27 de fev. de 2010

A mosca

Jurisvaldo é uma mosca; ou melhor um mosco, já que é um macho de sua espécie. Um macho novo, não no tempo, uma vez que já viveu sua fase de larva e de pupa e eclodiu há pouco para a última fase da vida. Assim, no conceito de tempo moscal, Jurisvaldo é um ancião; todavia, seu organismo pulsa como o de um adolescente… está na fase reprodutiva e tudo que Jurisvaldo deseja é encontrar uma mosca fêmea para, com ela, dar sua contribuição à continuidade de sua espécie.

Jurisvaldo enxerga o mundo com seus olhos de mosca; não faz nenhum julgamento, nenhuma análise uma vez que não teve outros olhos para ver e, então, comparar.  E ele nem quer saber de analisar nada, de entender nada; ele voa atento em busca da fêmea. Esse é seu dever e a sua natureza.

Então ele a vê, pousada, esfregando as patas traseiras nas asas. Jurisvaldo não a acha feia nem bonita, nem atraente ou gostosa. Ele não tem tais conceitos. Ele só sabe que é uma fêmea, há pouco eclodida da pupa como ele, e deve estar também em busca do macho para a reprodução.

Ele pousa à distância adequada e faz os movimentos certos para atrair a mosquinha. Ele não sabe que movimentos são esses, nem porque os faz, mas sabe que tem de executar essa dança. A mosquinha fica estática, olhando-o com seus olhos de mosca.  E move as asas na forma que deve mover.

De repente Jurisvaldo percebe que ela assume outra postura, fica atenta e sai voando rapidamente. Ele não tem tempo para pensar. Sente um forte vento e de repente está todo molhado. Mas estranhamente, esse molhado lhe deixa tonto, vai perdendo os sentidos, suas pernas estão estranhas, ele cai no vácuo. Jurisvaldo morre! Morre sem completar sua tarefa. Um banho de algo que vem com um vento forte e ele morre.

“_  Pronto, mamãe! Joguei o inseticida mas uma das mosconas azuis fugiu, a outra, morreu!” diz a mocinha de vestido florido.

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19 de fev. de 2010

O cãozinho preto

Naquela manhã ele levantou diferente. Pela janela viu que seria daqueles dias cinzas, de garoa fina e vento frio. “Nada animador para um sábado!”, pensou e foi ao banho.

Ao sair do quarto, lá estava o Fred – como sempre. Mas, diferente de sempre, o cão estava cabisbaixo, triste, nem moveu o rabo;  inusitadamente, mordeu a ponta de sua calça, como que puxando-o de volta ao quarto. 

_ “Pare com isso, Fred! já chega!”, e moveu a perna com força.  O cãozinho abaixou a cabeça e o seguiu lentamente.

Não havia café pronto. A empregada ainda não chegara. Ele custou a achar o filtro de papel e o coador, e descobriu que não havia fósforos ao lado do fogão; o acendedor elétrico há muito estava quebrado. Voltou à sala em busca do isqueiro. Lembrou-se que os cigarros estavam na mesa do estúdio, e com eles, o isqueiro. Assim, subiu as escadas já com a certeza que seria um péssimo dia. Quando voltou, o cãozinho estava sentado ao pé da escada.

Novamente o cãozinho pegou a ponta da calça! desta vez estava grunhindo.

_ “O que você tem, Fred? deixa de ser chato!” – fez um carinho na cabeça do cãozinho, que ficou choroso e o olhava muito triste.

Pegou o jornal que estava à porta, e foi para a cozinha. Finalmente fez o café, descobriu que não havia leite. “Merda! café puro me dá azia!” – mas tomou assim mesmo, enquanto lia as manchetes do dia. Logo passou aos quadrinhos e às palavras cruzadas, que hoje estavam mais difíceis que o costume, além do que custou a achar uma esferográfica que prestasse. A empregada chegou, desculpando-se pelo atraso devido à chuva, “mas também é sábado, não é costume vir aos sábados, vim porque o senhor pediu”.  Ele agradeceu o esforço da parte dela em vir no sábado.

_ “O senhor viu a fatura do cartão de crédito? chegou ontem pelo correio, deixei sobre o móvel da sala. Também ligaram do banco! aquele cheque… disseram que  o senhor precisa resolver na segunda-feira sem falta!”

A fatura do cartão de crédito… há dois anos que não o usava, havia estourado o limite por causa daquela sirigaita, estavam cobrando juros altos. Tentou negociar duas vezes, não aceitaram. Parou de pagar, que se dane o banco! Aliás, que se dane o mundo! e aquela merda de cheque! tudo porque o Joel não depositou o salario no dia certo, esculhambou todo o fluxo de cheques pré-datados.

Serviu mais uma xícara de café.

_ “O que tem esse cachorro? está choramingando desde que cheguei!” – o comentário da empregada o trouxe de volta, pois sua mente estava distante, lembrando daquela filha-da-puta que o havia enganado e se aproveitado do dinheiro enquanto tinha. “Mas pelo menos era gostosa e boa de cama…”

_ “Não sei, dona Marta! ele está é muito chato hoje! Vou sair, buscar leite, pão e dar uma volta! Se telefonarem, diga que estou viajando, inventa qualquer coisa, não quero falar com ninguém hoje!”

_ “Ninguém vai telefonar hoje! Afinal, é sábado! os bancos não abrem hoje, quase ninguém trabalha hoje! só ligam para cá fazendo cobrança, então hoje ninguém vai ligar. Olha, esqueci, vão cortar o telefone se não pagar até terça! ”

“Foda-se o telefone também”, ele pensou em dizer, mas não disse.

Fred ficou muito agitado quando percebeu que ele iria sair. Latiu forte, segurou de novo a ponta da calça, agitadíssimo!

_ “Não Fred! Não vou levar você, está chovendo! e fica quieto!”

Mas o cãozinho não ficou quieto! Continuou a latir, a pegar na ponta da calça, de tão agitado acabou esbarrando no console do telefone e tudo veio ao chão.

_ “Até parece que ele não quer que o senhor saia!”

Mas ele saiu! Deixou o Fred latindo desesperado, e a empregada arrumando o console e o telefone. A chuva havia aumentado, ele fechou melhor a japona e abriu o guarda chuva. Era uma boa caminhada até a padaria. Um caminhão entrou na rua vindo da esquina à frente.

(…)

O padre encerrou o ofício e disse algumas palavras – jargões de sempre. Afinal, não havia muita gente naquela manhã.  Um acidente estranho, um caminhão desgovernado… a dona Corina disse que havia sido suicídio, que perdeu a cabeça por causa daquela mulher, e outras versões sobre o mesmo tema. “Isso é conversa de velha fofoqueira”. O fato é que quase ninguém foi ao enterro, o vizinho e a empregada perderam quase todo o domingo para liberar o corpo no IML, nem houve um velório decente;  já chovia há dois dias, uma garoa fina, e estava frio. Os coveiros cuidaram logo de tapar a cova e as pessoas saíram rapidamente. O gerente do banco deu a eles uma gorjeta.

Ninguém reparou naquele cãozinho preto que estava atrás de uma lápide. Quando todos saíram, o cãozinho se aproximou, sentou sobre a terra úmida e começou a uivar…

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18 de fev. de 2010

Educação Teológica e Formação Pastoral (IV)

(conclusão: Educação Teológica e Formação Pastoral I, II e III)

As alternativas para a Igreja
Diante do quadro e das reflexões apresentadas nas três postagens anteriores, resta agora analisar as várias alternativas que, ao meu entender, são oferecidas à Igreja para definir o projeto de formação pastoral sem abrir mão da educação teológica de qualidade, e garantir que o clero futuro (nas três Ordens do Sagrado Ministério) tenha a competência necessária para apoiar e fortalecer as comunidades na Missão, cujos desafios são cada vez mais complexos.
Aqui vou dedicar minha reflexão particularmente à Igreja que eu amo e da qual faço parte, a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB). Peço a compreensão dos leitores e leitoras membros de outras Igrejas, na esperança que, de alguma forma, estas reflexões sejam úteis também para elas. 
A IEAB precisa definir e adotar, com urgência,  uma nova política para a formação e capacitação do seu clero, incluindo ai a revisão dos critérios canônicos para as Ordenações e, principalmente, o reconhecimento de Ordens e recepção de clérigos advindos de outras confissões.
É responsabilidade da Igreja, especialmente do Episcopado, permitir e criar condições para que cada pessoa vocacionada possa refletir e compreender com clareza as implicações do Ministério Ordenado em sua vida; e também decidir com clareza pelo ministério ordenado nesta Igreja – com nossa identidade e especificidade, ou seja, nossa Tradição, nossa Doutrina, nosso Rito e nossa Disciplina, valores que considero inegociáveis sob o risco de perda da identidade (sobre isso espero em breve publicar um artigo, já em preparo, neste blog).
Por isso, lanço aqui, mais uma vez, o desafio que tenho proposto em várias ocasiões: a IEAB precisa urgente de uma Pastoral de Vocações, uma linha de trabalho pastoral voltada especialmente para as pessoas vocacionadas, ou que se sentem vocacionadas, ao Sagrado Ministério, ou que venham de outras denominações aspirando o exercício do Sagrado Ministério nesta Igreja. Não me refiro a mais uma esfera burocrática; para isso já temos as Comissões de Ministério em diversas dioceses. Falo de uma ação pastoral adequadamente planejada e sob supervisão direta dos Bispos, aproveitando a experiência dos clérigos mais antigos, muitos já aposentados mas ainda com capacidade física, mental e espiritual para atuarem pastoralmente. Temos de recuperar o conceito de ancestralidade e de respeito pela sabedoria dos antigos, sabedoria esta que não vem das academias mas da vida.
Quanto às alternativas para a educação teológica e formação pastoral, percebo, para a IEAB, as seguintes possibilidades:
    1. Criar sua própria Academia Teológica – A(s) Faculdade(s) de Teologia da Igreja.
É uma alternativa possível, de lenta construção e com efeitos a longo prazo,  exigindo um investimento financeiro considerável. Mas vejo sérios inconvenientes para tal solução, além da questão dos recursos financeiros a serem investidos:
A Igreja teria de cumprir uma enormidade de exigências burocráticas do Estado, sem ter a infra-estrutura adequada para atender a isso;
A Igreja teria de entender e aceitar que um empreendimento dessa monta precisa ser assumido como empreendimento empresarial e comercial; assim, teria de atender às demandas do mercado, que não são necessariamente compatíveis com a demanda específica da Igreja; isso significa, ainda, que o curso de Teologia terá de ser aberto e não exclusivamente confessional; e o empreendimento terá de ser administrado profissionalmente, de acordo com as regras dinâmicas do mercado, ou seja, eticamente estéril; no mundo do mercado, as regras são duras e aéticas, oscilando conforme as tendências dos modismos e das demandas.
A Igreja não dispõe de quadros suficientes com a capacitação acadêmica exigida pela legislação – teria de descobrir vocações para isso e investir em sua capacitação técnica e acadêmica ; além disso, a Igreja teria de concentrar geograficamente esse pessoal, dificultando assim as possibilidades de integração entre o mundo acadêmico e o mundo eclesial da nossa realidade enquanto Igreja brasileira e parte de uma Comunhão Mundial;
A possibilidade de desenvolver um projeto de Educação à Distância, nova tendência do mercado, não elimina a exigência de campus e corpo docente habilitado, além disso, a legislação exige que hajam disciplinas presenciais; ou seja, o investimento seria maior ainda, mas criaria a ilusão ufanista de que estaríamos atendendo a uma clientela maior. Todavia, tenho minhas dúvidas se a cultura brasileira possibilita realizar tal iniciativa com seriedade... O que tenho visto é a expansão do mercado de diplomas, com raras exceções, e não me refiro apenas à área da Teologia.
    2. Fortalecer os Seminários Teológicos e os Centro Diocesanos de Teologia
No presente momento, a IEAB tem dois Seminários Teológicos: o de Porto Alegre e o de Recife, organizando a demanda por área geográfica; além deles, cada Diocese tem seu Centro de Teologia. Um desses centros, o da Diocese de São Paulo, é um sério candidato a se tornar o terceiro Seminário Teológico da Igreja, para atender as dioceses da Região Sudeste, seja pela proximidade geográfica, seja pela sua identidade cultural.
Na verdade, o modelo de Seminário Teológico vem desde o tempo dos fundadores, e embora tenha sofrido algumas mudanças no decorrer da história, o princípio é o mesmo. A criação dos centros diocesanos foi uma alternativa adotada para atender seminaristas que não poderiam deslocar-se para as cidades onde estão os seminários.
Este modelo foi enriquecido com a criação do CEA – Centro de Estudos Anglicanos, há pouco menos de 15 anos. Eu era membro da JUNET – Junta Nacional de Educação Teológica – quando o projeto do CEA foi desenvolvido (na mesma época, o Centro da Diocese de Recife foi elevado a Seminário Nacional, tirando assim a hegemonia do Seminário de Porto Alegre).  O princípio fundante do CEA, se me recordo bem, era que o Centro atuaria em duas frentes:
a) subsidiando os Seminários Teológicos e os Centros de Teologia para a formação específica confessional (história, teologia, doutrina, liturgia, etc.);
b) desenvolvendo e realizando o processo de formação permanente e atualização teológica do clero e lideranças da Igreja.
Na verdade, apesar dos poucos recursos e quase nenhuma infra-estrutura, o CEA vem desenvolvendo, e bem, a segunda frente; mas há uma dificuldade intrínseca e política para atender à primeira. O CEA é, hoje, praticamente o seu Coordenador, que demanda um esforço considerável para cumprir os programas de reciclagem do clero e capacitação da liderança leiga, além da publicação de uma revista (Inclusividade) cada vez mais reconhecida e respeitada no mundo acadêmico e não acadêmico.
Todavia, os dois Seminários, até o presente momento, seguem filosofias educacionais muito diferentes e inclusive nas respectivas opções teológicas e metodológicas. Por um lado, isso é muito bom, pois atesta a diversidade da Igreja brasileira, mas por outro lado pode ser sinal de que a igreja não tem uma política de educação teológica bem formulada. Não tenho elementos para avaliar isso com segurança.
Quanto aos Centros Diocesanos de Teologia, também não tenho elementos para uma avaliação segura, uma vez que cada um tem suas próprias características, à imagem e semelhança da própria Diocese.
O que se precisa avaliar, neste momento é se os Seminários Teológicos e os Centros Diocesanos atendem seu propósito. Com efeito, vejo aqui três dificuldades:
Os Seminários Teológicos se entendem como academias teológicas da Igreja, ou seja, funcionam como se fossem faculdades. Todavia, são cursos livres, não reconhecidos, e as pessoas por eles formados não são reconhecidas como bacharéis pela legislação; para tanto, devem cumprir um curso de “convalidação” do seu diploma – o Brasil cria jeito para tudo – de custo razoável e, geralmente, de qualidade duvidosa, com notáveis exceções;
Os Seminários necessitam de um corpo docente habilitado mas dispõem de poucos recursos financeiros para isso. Em outras palavras, há muita improvisação. Não falo isso de forma pejorativa – eu mesmo fui reitor do Seminário de Porto Alegre e sou muito agradecido pela dedicação, competência, espírito de voluntariado e capacidade de improvisação dos docentes e dos estudantes, pois conseguimos – como comunidade educativa – realizar muito e  com qualidade. Mas carecemos de maturidade acadêmica, e isso é uma conquista a longo prazo e pressupõe uma Congregação Docente em permanente processo de atualização e capacitação, envolvidos não só com aulas, mas com pesquisa e produção de conhecimento.
Quanto aos Centros Diocesanos, segundo percebo, lhes faltam recursos, corpo docente adequado e geralmente dependem, exclusivamente, de um(a) coordenador(a) que, apesar do imenso esforço, da boa vontade e dedicação, nem sempre é uma pessoa realmente habilitada profissionalmente para atuar em Educação.
A grande vantagem dos Seminários (e por extensão, dos Centros Diocesanos) é que podem ser espaço adequado para a formação clerical e laica dentro dos padrões da nossa identidade e confessionalidade, e também espaço para o desenvolvimento de uma espiritualidade vocacional.  A grande desvantagem é que, para atenderem com qualidade e competência à sua finalidade, o custo de manutenção – tal como hoje funcionam – é muito alto e além das possibilidades reais da Igreja.
    3. A solução híbrida – proposta para ser melhor discutida e aprofundada
A questão, no fundo é: como poderia a Igreja manter controle sobre a formação do seu clero futuro e formação permanente do clero existente, sem prejudicar a qualidade da educação teológica? Para mim, a solução seria fazer uma distinção operacional entre educação teológica e formação pastoral.
Assim, a Igreja deveria selecionar no mercado boas Faculdades de Teologia, dentro das regiões diocesanas, por exemplo, e criar meios para que os seminaristas possam cumprir ali sua formação teológica com qualidade.  Ao mesmo tempo, os Centros Diocesanos e os Seminários poderiam cumprir com a exclusiva tarefa da formação pastoral e denominacional, além de estimular a reflexão pessoal e a espiritualidade de cada seminarista. Ao mesmo tempo, os nossos seminaristas poderiam conviver em um espaço de discussão acadêmica de qualidade e dentro da diversidade cristã. O custo de bolsas de estudos em boas faculdades é, com certeza, bem menor que a manutenção de uma instituição teológica própria que seja competente e eficaz, e cumpra as exigências legais para um curso superior.
Há muitas possibilidades para uma solução desse tipo. Várias Faculdades de Teologia, por exemplo, possibilitam a criação do “Departamento da Igreja”, que sob os auspícios desta, daria a formação teológica exclusiva da denominação aos seus seminaristas, através de balanceamento com a grade curricular padrão. Ainda assim, a formação pastoral e a espiritualidade vocacional ficaria a cargo dos Centros e Seminários, ou seja, dentro da Igreja.
Deveria haver uma integração entre o CEA, os Seminários Regionais e os Centros Diocesanos, penso até mesmo em uma equipe multidisciplinar que atuaria nacionalmente ou regionalmente dentro de uma grade curricular e conteúdos padronizados para a formação específica do nosso clero, dos que chegam de outras denominações e mesmo das lideranças leigas.  A médio prazo teríamos uma equipe de bons teólogos e teólogas, de fato episcopais- anglicanos, atuando em nível nacional e integrados com as diferentes realidades regionais e diocesanas.
Não tenho respostas prontas, apenas estas idéias que necessitam ser aprofundadas, e discutidas pela Igreja. É neste espírito de colaboração que deixo aqui estas reflexões livres, sem formalismos acadêmicos, apenas tentando dar alguma luz com simplicidade, como o vôo de pirilampos e de pintassilgos.

Quaresma, 2010.
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15 de fev. de 2010

Educação Teológica e Formação Pastoral (III)

[continuação – veja antes s: Educação Teológica e Formação Pastoral (I) e (II)]

O Clero: pessoas chamadas e separadas para servir à e na Igreja
Como disse no texto anterior (Educação Teológica e Formação Pastoral II – vide abaixo), quero agora prosseguir dentro da perspectiva da minha identidade confessional, ou seja, enquanto episcopal-anglicano, falando com o olhar para a minha Igreja no Brasil, a Tradição por ela herdada e recebida, sua doutrina e rito.  Espero que, de alguma forma, os que estejam lendo mas têm outra identidade denominacional, procurem fazer as equivalências possíveis para refletirem sobre a sua própria comunidade confessional e tradição.
Na tradição episcopal-anglicana, o título “Pastor” é atribuído ao Bispo; as pessoas que pastoreiam as comunidades o fazem na comunhão com seu Bispo (ou Bispa) e são chamadas de Presbíteros(as).  Nesse sentido, o anglicanismo e o episcopalismo seguem a tradição Patrística, focando no Episcopado a totalidade e a unidade da Igreja.
O povo da Igreja trata a nós do clero, de forma carinhosa e respeitosa, pelo título de “Reverendo” ou “Reverenda”, e raramente de “Pastor” ou “Pastora”. Em poucos lugares no Brasil, mas comum nos países de língua inglesa, os presbíteros são chamados de “Padre” (Father) – da mesma forma que o clero católico-romano – e as presbíteras,  “Madre” (Mother).
Não se pode esquecer, jamais, que as Sagradas Ordens de Presbítero e de Bispo são dadas sobre a Sagrada Ordem de Diácono. Todo Presbítero, e todo Bispo, é antes de tudo Diácono. Portanto, receber a ordenação presbiteral ou a sagração episcopal não é honra, nem mérito, mas – exclusivamente – encargo de serviço dado a alguém que já fora separado da e na Comunidade para servir a essa Comunidade e, com a Comunidade, ser – para o mundo – o sinal do amor de Deus, em nome de Jesus Cristo. 
Assim, ninguém é Presbítero ou Bispo por si e para si mesmo, mas para toda a Igreja de Cristo – não só entendida como instituição religiosa, mas principalmente como comunidade de comunhão, proclamação e serviço, obediente a Deus, em Jesus Cristo, o Verbo Encarnado. E, com a Igreja, denunciar o Príncipe deste mundo, proclamar o Evangelho da Salvação e testemunhar ao mundo a graça amorosa oferecida por Deus em Jesus Cristo.
É preciso ter claro que o clero é formado por pessoas que já não são mais iguais às outras da comunidade. Isso pode parecer estranho nestes tempos de “democratismos” e “inclusividades”. Mas assim o é, de fato. Na minha geração, no seminário, gostávamos de afirmar que os clérigos são pessoas comuns, iguais às outras, em nada especiais ou diferentes. Isso fazia parte de nossa ideologia libertária diante de um mundo cheio de exclusão e opressão, como é ainda hoje. Todavia hoje sei que afirmar as pessoas do clero como diferentes não significa colocá-las acima ou abaixo das demais, não significa negar sua humanidade e fraqueza, nem significa  diminuir em dignidade as pessoas que não sejam parte do clero. Significa, sim, compreender a diversidade de dons e ministérios na Igreja.
O Espírito Santo concede à Igreja, ou melhor, às pessoas batizadas que compõem a Comunidade Confessante, uma grande variedade de dons e ministérios. Isso já era compreendido pela Igreja Primitiva, e o Apóstolo Paulo dá muita ênfase nisso, sendo quem primeiro sistematizou tal compreensão. É muito importante compreender que os dons são dados ao mesmo tempo que o chamado ao exercício de um ministério. Nenhum dom é dado para a pessoa em si, para seu próprio benefício, mas para que ela o empregue a serviço e para o bem das demais. Nesse sentido, todas as pessoas são chamadas e separadas para servirem umas às outras no amor e na comunhão com Jesus Cristo.
O ministério clerical é dado às pessoas chamadas para serem servos dos servos na Comunidade de Cristo e, com a Comunidade de Cristo, servirem a todas as pessoas. Assim, o clero é chamado ao ministério especialmente para o benefício da Igreja, para fortalecê-la na Fé através da pregação, do ensino e dos sacramentos, como sinal e símbolo da presença permanente do Senhor no seio de Sua Santa Igreja. A percepção desta identidade especial do clero é que faz o povo conceder aos clérigos e clérigas, e só a estes, o título carinhoso, porém afirmando a vocação específica de serviço, de “Reverendo”, “Reverenda”.
Por isso o Clero, quando no exercício formal de seu ministério perante a comunidade reunida, usa vestes próprias, os chamados paramentos.
Os paramentos não servem para a glorificação de quem os veste, mas para recordar, em primeiro lugar a tal pessoa, que ela está revestida do poder e da autoridade de Cristo que lhe foi delegada pela Comunidade quando a ordenou às Sagradas Ordens (o Sacerdócio é único e pertence a Cristo; é patrimônio concedido à Comunidade por Cristo, através da comunhão com Ele; é dado como encargo para alguns a fim de ser exercido para o benefício de todos). Por isso, quem coloca as vestes litúrgicas deve vestí-las em oração, para evitar a tentação de glorificar-se a si mesmo.
Em segundo lugar, os paramentos recordam à comunidade o Senhorio de Cristo. Quem veste os paramentos, naquele momento, não é mais a pessoa, mas o sinal e símbolo da presença amorosa e da presidência de Jesus Cristo, o único sacerdote e Sumo Sacerdote, o bom Pastor.
Por isso, é importante que seminaristas, aqueles e aquelas chamados para o ministério clerical, desenvolvam essa compreensão durante o período em que se preparam para isso. É importante que vejam a vida clerical além de uma carreira profissional dentro de uma instituição, que poderá trazer glória e sucesso futuro. Caso contrário, se tornarão escravos das ideologias e valores do mercado, e farão da Igreja o seu negócio particular. É fazendo tal reflexão que alguém poderá avaliar com segurança se tal é a sua Vocação ou não.
Tal compreensão jamais  será desenvolvida na academia teológica secularizada.
Profecia, Sacerdócio e Teologia
Penso que as duas características que marcam, nas Tradições Episcopaliana e Anglicana, o exercício do Presbiterado (e do Episcopado – não esqueçamos que Bispos e Bispas são, também, Presbíteros e Presbíteras) é que, nós – presbíteros e presbíteras – servimos à Igreja enquanto Profetas e Sacerdotes.
O ministério profético se manifesta através da denúncia, do anúncio e do testemunho. Esse ministério, aliado ao serviço (diakonia), é o ministério fundamental da Igreja, é a síntese de sua Missão, da Igreja como um todo: a Igreja é comunidade profética, a serviço no mundo, em nome de Jesus Cristo
Mas cabe aos encarregados do cuidado pastoral serem, eles mesmos, profetas para a comunidade, através da pregação e do ensino, além de seu testemunho de vida – vida de pecador movido pelo arrependimento e pela certeza da misericórdia de Deus.  Nesse sentido, cada pastor, cada pastora, deve ser o teólogo, a teóloga, para a comunidade, não como um acadêmico, mas como quem fornece à comunidade as chaves de entendimento e compreensão para avaliar o momento histórico presente, situando-a e instrumentalizando-a para o exercício do ministério profético, fortalecendo a comunhão e o espírito diaconal.
Por isso, o estudo da Teologia enquanto conhecimento é importante para o clero, não como mera formalidade, mas como instrumental para o exercício de seu próprio papel e ministério.  Não só o estudo, mas também a produção de uma teologia adequada ao momento e à realidade da comunidade. Essa produção é o que se espera no momento litúrgico da Pregação e também nas reuniões de estudo e formação da comunidade, ou pelo menos na formação dos catequistas e docentes da comunidade. Assim, a Teologia é uma ferramenta que fortalece o ministério profético do clero.
Na tradição herdada pelo Anglicanismo, o sacerdócio é parte do múnus pastoral.  Tal sacerdócio não é entendido pela Igreja como “intermediação” da Graça. Nesse sentido, o Anglicanismo segue a Tradição da Reforma Protestante do século XVI.  Os presbíteros e presbíteras anglicanos exercem o sacerdócio universal de todos os crentes em Cristo, como serviço à comunidade. Isso lhes é delegado como encargo pela própria comunidade ao separá-los, recomendá-los e apresentá-los para a Ordenação, cerimônia da qual a comunidade participa e afirma seu compromisso para com o ordinando e este afirma, solenemente, seu compromisso para com a Igreja. 
O ofício especial dos presbíteros e presbíteras é nutrir a comunidade com os sacramentos, não por um poder próprio, mas pelo poder do Espírito Santo presente na comunidade reunida em adoração e oração – na liturgia. O exercício do sacerdócio, nessa perspectiva, não existe por si mesmo, independente da comunidade. Mas é exatamente a presença da comunidade que legitima a ação do sacerdote.
Ao contrário dos sacerdotes do Antigo Testamento, eu – enquanto presbítero, e portanto, sacerdote – não ofereço sacrifícios em favor da comunidade. Não posso fazer aquilo que já foi feito uma vez por todas por Jesus Cristo: o Sacrifício Único, Perfeito, Completo e Suficiente em favor de todo o mundo. Também não celebro os sacramentos para mim mesmo; por exemplo, não tem sentido eu sozinho celebrar a Ceia do Senhor, como se tal celebração fosse eficaz por si mesma (há situações extremas em que isso não só é possível, como recomendado; mas não vem ao caso neste texto).  Também não tenho o encargo de “oferecer diariamente o sacrifício”, porque o Cristo já o fez de forma definitiva e final.
Assim, ao exercer o sacerdócio, presbíteros e presbíteras exercem o sacerdócio da Igreja e para a Igreja, sacerdócio que é de Cristo, o único Sumo-Sacerdote. Nesse sentido, o sacerdócio do clero anglicano é sinal e símbolo do sacerdócio de Cristo, é exercido com a comunidade reunida ou a partir da reunião da comunidade, porque é a Comunidade quem lhe dá legitimidade. Por exemplo, ao levar o Santo Sacramento a um doente, se o presbítero ou diácono não puder estar acompanhado por outras pessoas da comunidade, deve ter claro e expressar que tal ministração é parte daquele momento koinônico da comunidade, reunida em adoração ao Senhor sob a Presidência do mesmo Senhor.
A compreensão adequada do significado do sacerdócio e da ministração pastoral é necessária aos seminaristas, para que possam ter clareza sobre o significado de sua ordenação, seja como diáconos, seja posteriormente como presbíteros e bispos.
Essa reflexão deve ser iluminada pela Tradição própria da Igreja, e isso não é parte do conteúdo acadêmico; quando o tema surge, as diferentes tradições são estudadas como “diferentes formas de pensar” – ou seja, o tema é desvinculado da vivência comunitária e confessional do estudante, a menos que seja em uma faculdade confessional de Teologia.
Formação permanente do clero
Obviamente, a formação teológica do clero tem de ser formação permanente. Não bastam as antigas lições do curso formal, mas é preciso estar em dia com a reflexão que se realiza na academia e também com aquela teologia elaborada pelos demais clérigos em sua atividade de ministração e ensino da Palavra.
Por isso é importante que o clero se reúna com frequência para partilhar a experiência pastoral, as leituras e estudos pessoais, as dores e as alegrias do ministério de cada um e cada uma. Talvez este seja um dos maiores serviços que o Episcopado pode prestar à Igreja: propiciar aos membros de seu clero as oportunidades para estarem juntos, em comunhão e oração, partilhando o ministério, e o próprio Episcopado participando desses momentos como um primus interpares – a reunião dos diáconos, já que todo clero é formado por diáconos!!!
A atualização teológica do clero também deve ser uma tarefa permanente e formal, regida pelos padrões da academia. Por isso é fundamental para a Igreja o ministério das pessoas que se dedicam ao estudo permanente da Teologia, seja por ofício, seja pelo prazer de estudar. Teólogas e teólogos, sejam parte do clero ou do laicato, devem ver a formação e capacitação permanente do clero como um dos pontos fundamentais de seu ministério específico. Cabe ao Episcopado, por ser o colegiado dos Pastores de pastores, cuidar disso com especial atenção e carinho; se necessário, com o poder de sua autoridade, porque o que está em jogo é a qualidade da  pregação e do ensino da Igreja, ou seja, o que está em jogo é a própria qualidade da comunidade na execução de sua missão. 
(continua)
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10 de fev. de 2010

Educação Teológica e Formação Pastoral (II)

(Continuação -   Educação Teológica e Formação Pastoral (I), postado mais  abaixo)

Que tipo de teologia está formando o clero do futuro?
Essa reflexão é importante para o contexto evangélico brasileiro; tenho visto, inclusive nas faculdades mais renomadas, estudantes que fazem a separação entre sua formação teológica e a sua vocação, quase exclusivamente entre os estudantes evangélicos e protestantes.
Várias vezes, conversando com estudantes de teologia que se destinam ao pastorado, ouvi coisas assim: “Eu estudo teologia porque a Igreja exige, para me ordenar! mas depois eu só preciso dos 66 livros da Bíblia e do Espírito Santo”. Também me surpreende muito existirem entre os estudantes de teologia, aberrações conceituais como “teologia da prosperidade”, “crescimento numérico da Igreja por qualquer meio” e “fundamentalismos cruéis” (vi em muitos carros parados nos estacionamentos das faculdades aquele famoso decalque: “em caso de arrebatamento, este carro ficará desgovernado”), além, é claro, do pensamento fascista de excluir ou querer “converter” o diferente.
Além de blasfemo e herético, este estado de coisas me preocupa muito, pois temo pelo futuro das Igrejas no Brasil.  Temo que o futuro das Igrejas seja a multidão de consumidores de um sagrado adaptado às massas, cristianismo sem conversão, sem adesão à Pessoa de Jesus Cristo; um protestantismo – generalizado como “povo evangélico” – decadente, que nega sua própria origem, e faz da religiosidade popular manipulada a superstição disfarçada de doutrina e consolo. Não seria isso a forma contemporânea da venda de indulgências e de lugares no “céu”?
Ou seja, há uma diferença entre o conteúdo dos estudos,  a compreensão da vocação e o significado de missão.

Em parte, isso é consequência do próprio estado das Igrejas. Em sua maioria, as instituições eclesiásticas se vêem forçadas a assumir seus custos, ampliar seus investimentos, fortalecer-se institucionalmente (mostrar uma imagem de instituição sólida e forte), ou seja, as Igrejas entraram na lógica do mundo capitalista, a busca de “bons resultados”: diversificar a produção, crescer a qualquer preço, conquistar mercados, expor a prosperidade como sinônimo de bênção e graça. 

Nessa lógica, a qualificação da “mão-de-obra” está centrada na capacitação técnica diante dos resultados a serem alcançados; assim  importa mais conhecer técnicas de marketing que exegese; utilizar a mídia de forma eficiente (aumentar as “vendas”) que homilética; técnicas de relações públicas que o exercício da misericórdia e da compaixão.  Os estudantes pensam assim porque, de certa forma, sofrem influência da “ideologia de prosperidade” dominante na sociedade de consumo capitalista e adotada por grande parte das lideranças eclesiásticas, sejam leigas ou clericais. As próprias congregações estão mergulhadas nessa ideologia, de forma a exigirem “resultados objetivos” como critério de sucesso dos seus pastores.
Em busca de caminhos
Diante do quadro atual, em que as Igrejas estão à mercê da lógica de mercado e a  formação teológica está vinculada ao sistema legal do ensino superior (currículos e programas obedecem diretrizes do MEC; há uma burocracia normativa complexa a ser cumprida, de forma que as Igrejas não têm o controle real do processo educativo), quais os caminhos possíveis para a formação dos futuros pastores e pastoras, do clero da Igreja?
É evidente que a qualidade acadêmica não pode ser desprezada. O bom conhecimento teológico é fundamental para garantir o bom resultado da pregação, do ensino e do fortalecimento da vida em comunhão nas comunidades .
Por outro lado, há conteúdos que não estão devidamente incluídos nos currículos acadêmicos atuais, uma vez que a maioria das faculdades de teologia são Inter denominacionais ou vinculadas a universidades particulares.
Refiro-me ao específico da identidade denominacional e confessional de quem está se preparando para o pastorado: a história, os ritos, as tradições, as doutrinas e os aspectos canônicos, ou seja tudo aquilo que confere à cada denominação, a sua identidade específica. No específico da discussão acadêmica em sala de aula, onde a diversidade de identidades poderia ser algo útil e enriquecedor, essa mesma diversidade é desconsiderada na reflexão teórica a partir dos contextos de cada disciplina, algumas vezes até sob a justificativa de respeito pelas características individuais de cada denominação religiosa. A reflexão acadêmica torna-se acrítica ou, quando muito, generalista em sua crítica, sem estimular que o estudante faça a auto-crítica pessoal e denominacional (até porque os estudantes de teologia, como a maioria dos estudantes universitários brasileiros, carecem de formação escolar prévia competente e estimuladora da reflexão – mas isso é um problema além da amplitude deste texto)
Há também de se considerar os aspectos da formação pessoal inerente a quem se destina ao ministério ordenado: a vida de piedade, o senso da vocação, a busca permanente da comunhão com Deus, o sentido de serviço que o ministério confere. Isso também não pode ser esperado das faculdades de teologia, uma vez que não se destinam a formar clero, mas teólogos. A teologia, trabalhada enquanto discurso acadêmico, está desligada da vida pessoal e comunitária do estudante.  Na verdade, como discurso elaborado com consistência e coerência interna, a teologia, por si só, não pressupõe a fé.
Considero fundamental que o clero seja teologicamente formado, e bem formado. Não estou caindo na falaciosa separação entre pastores e/ou teólogos; também não vou recorrer a outra falácia, o conceito de teólogo-pastor  ou pastor-teólogo, que há alguns anos serviu para bons debates acadêmicos estéreis, e justificou muitos equívocos na formação do clero das Igrejas.
Talvez seja necessário pensar sobre a relação entre pastoral e teologia, ou melhor, entre pastorado e teologia. Qual o papel da teologia no exercício do pastorado? Como a teologia pode dar significado e conteúdo ao pastorado?  Como o pastorado pode desafiar a reflexão teológica a partir da realidade de vida dos cristãos?
Não posso, e não quero, responder a essa questão de forma genérica. Então, a partir daqui, falarei como episcopal-anglicano e minha reflexão estará dirigida e fundamentada pelos conceitos de identidade e de doutrina da minha própria denominação. Ir além disso exigiria uma pesquisa mais aprofundada para discernir o específico de cada identidade denominacional e obrigaria a apresentar propostas generalizadas de forma a incluir a maior parte das diferentes Igrejas e suas tradições específicas.
(continua)
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8 de fev. de 2010

Educação Teológica e Formação Pastoral (I)

Introdução
Durante muito tempo, quando fui seminarista por exemplo, estas duas expressões eram sinônimas. Afinal, o Seminário era a “escola de profetas” ou seja, preparava-nos para sermos pregadores da Palavra e pastores do Povo de Deus. Por maior ou menor que fosse o nível acadêmico, a formação era centrada no pastorado.
Haviam exceções, por exemplo, algumas instituições de ensino teológico fortemente influenciadas (e patrocinadas) pelas igrejas protestantes do norte europeu. Que eu me recordo, só a Escola dos luteranos (sinodais) em São Leopoldo era realmente uma academia teológica e não um seminário, mas posso estar equivocado. Também me parece que o ISEDET (uma instituição interdenominacional), em Buenos Aires, tinha esse caráter quase exclusivamente acadêmico. Naquele tempo, as distâncias geográficas eram realmente distâncias e as possibilidades de contato eram raras e caras.
Na Europa e, por extensão, nos Estados Unidos, as academias teológicas são parte do contexto universitário, onde a Teologia é trabalhada  de acordo com os critérios acadêmicos de fazer ciência e produzir conhecimento (não vou discutir se Teologia é ciência! estou apenas registrando um fato).  Quero dizer que, na Tradição do antigo ocidente, a Teologia  - desde a Idade Média – é enquadrada como carreira acadêmica, enquanto aqui era - quase exclusivamente - parte da carreira eclesiástica.  Uma coisa, porém, não exclui a outra, mas isso não é o assunto.
Não posso avaliar como é feita a formação pastoral na Europa ou nos Estados Unidos, como era e como é hoje; não tenho dados suficientes para uma análise responsável.  Mas posso refletir sobre a realidade presente no Brasil, a partir da minha experiência enquanto estudante de teologia brasileiro nos anos ‘70 do século passado, e como professor nos dias de hoje.
A Educação Teológica da minha geração
Na maioria das igrejas cristãs brasileiras, o seminário era a Igreja formando seu clero, seu corpo pastoral.  A Teologia, bem trabalhada e de muita exigência, era ferramenta básica para iluminar o fundamento da vocação, a qual provinha da experiência de fé e da vida eclesial  do estudante (seminarista).  A Teologia, enquanto conhecimento acadêmico, não era o objetivo principal dos seminários, mas sim como instrumental indispensável para o exercício do pastorado.  Em alguns seminários protestantes, nem todos os estudantes destinavam-se ao ministério ordenado. Sempre havia, aqui e ali, aqueles que - pretendendo manter-se no estado laico - buscavam o conhecimento teológico para melhor desenvolver seu ministério (por exemplo, catequese, ensino, etc...), mas nem por isso deixavam de receber a mesma formação voltada ao pastorado.
O fato é que, naquele tempo e até há poucos anos atrás, o curso de Teologia não existia formalmente no sistema educacional brasileiro. Era considerado assunto das igrejas e não havia nenhuma intervenção do Estado nas definições curriculares, sistema de ensino, etc.... Era exclusivamente do âmbito de cada Igreja definir a formação do seu clero.
Assim sendo, os seminários eram mais que academias. Além do estudo sério e profundo das diferentes áreas teológicas, da leitura dos teólogos contemporâneos, da reflexão a partir das novas linhas teológicas que vinham surgindo desde o pós-guerra, e das Ciências Humanas que completavam o currículo escolar, a vida do seminarista era envolvida por outras atividades essenciais para o desenvolvimento de sua vocação específica.
Havia, por exemplo, a formação básica em Música, porque esperava-se dos pastores serem capazes de usar o hinário mesmo quando a congregação não tivesse um grupo de música.
Mas quero chamar a atenção para as muitas atividades extra-curriculares. Cada seminarista devia estar envolvido na vida de uma comunidade eclesial, como um estágio; mas não exatamente um estágio, mas um serviço. Os dias de retiro, pelo menos a cada semestre, forçavam a reflexão sobre a relação com Deus, a obediência a Deus, o desenvolvimento da espiritualidade e piedade pessoal. A vida comunitária (mesmo quando os alunos não eram internos) era estimulada e assim se desenvolvia a capacidade de ouvir e de dialogar, de exercer a misericórdia, de perdoar, de conviver dentro de uma regra de disciplina, e a prática da solidariedade.
A presença de um Capelão, um clérigo, docente ou não, era fundamental para acompanhar pastoralmente cada estudante e também o corpo docente. O seminário era mais que uma escola; era, sim, uma comunidade de convívio, partilha, reflexão e oração. Afinal, um seminário formava pregadores da Palavra e pastores para o Povo de Deus, não intelectuais para a comunidade acadêmica (embora alguns até faziam ou fizeram sucesso lá!).
Obviamente estou falando em termos ideais e - por que não? - com saudosismo. É claro que haviam as intrigas, as brigas, as deficiências, os egos docentes e discentes, as deficiências curriculares … afinal, esse é o preço do convívio humano; sem falar da repressão pelas cúpulas eclesiásticas comprometidas com a ditadura militar. Mas que fique claro que  todo o contexto do seminário visava formar pastores, pessoas chamadas para uma vocação muito específica: denunciar o pecado do mundo, anunciar a Palavra da Salvação, congregar e nutrir o Povo de Deus. Os seminários eram Escolas de Profetas.
A Educação Teológica Hoje
Não caberia aqui a história de como se deu esse processo, mas o fato é que hoje a Teologia está enquadrada no sistema de ensino superior no Brasil. Curiosamente, muito mais no contexto de escola isoladas ou centros universitários particulares do que nas instituições públicas de ensino superior.
Assim, hoje o estudante de Teologia não tem mais aquela identidade de seminarista, e muitas vezes não é visto como tal pela sua Igreja. É um universitário como qualquer outro, embora a maioria deles não tenha muita clareza para que serve o diploma de Teologia, além de trabalhar na Igreja.
Muitas Igrejas, especialmente no contexto do Mundo Evangélico, querendo garantir certa seriedade ao seu clero, exige a formação teológica universitária para seus pastores.
As Igrejas caíram na mesma falácia do mercado com o diploma universitário: é preciso ter diploma de curso superior para bons empregos. Assim, uma multidão começou a ingressar nos cursos universitários para conseguir o diploma e não o conhecimento. Isso levou à avacalhação do diploma de curso superior, e o mercado começou a exigir MBA’s, cursos de pós-graduação, e até mestrados. E hoje a gente vê a mesma esculhambação nas pós-graduações: todo mundo quer o papel, não o conhecimento. E como as escolas particulares dependem de clientela… bem esse é outro assunto!
Como o mercado religioso está em expansão no Brasil, as escolas de teologia ficaram cheias de alunos, visando “trabalhar” na Igreja, ou seja, negociar o Sagrado enquanto produto de consumo. Não se fala em vocação, não se fala em pastoral.  Não afirmo que não existam vocações, ou que se descuidou da pastoral, mas as escolas de teologia, em sua maioria, são como qualquer outra escola: aulas, avaliações, trabalhos e o objetivo final é o diploma.
Uma coisa tenho para mim: enquanto conhecimento, a Teologia é um discurso que não pressupõe a fé. Sim, sou pietista! Assim como eu não preciso ter um contato ou uma experiência pessoal com o méson-pi-zero para estudá-lo enquanto objeto das equações da física quântica, não preciso ter uma experiência de fé para tratar de temas teológicos enquanto conhecimento. Afinal, é um exercício da Razão, que tem seu método e forma.
Há faculdades de Teologia de excelente nível, assim como há faculdades de Direito ou de Educação Física de excelente nível. Mas também há muita faculdade de Teologia, como de Direito ou de Educação Física que é pura picaretagem, apesar dos “meticulosos controles” do Ministério da Educação. Da mesma forma, existem Igrejas e as "lojas de bênçãos”.
A pergunta que fica girando na minha cabeça, no convívio com estudantes de teologia, desde que eu era Secretário Regional do CLAI, e hoje no magistério, é a seguinte: onde está a vocação? onde está a consciência do Chamado?  onde está a piedade pessoal? onde está a preocupação em se estudar um Bultmann ou um Barth para além das avaliações escolares, mas para a formação na comunidade eclesial?
Onde estão as perguntas que meus professores no seminário faziam, não nas provas mas nas conversas e nos encontros de reflexão, traduzindo a nossa angústia porque tínhamos  - de certa forma – a consciência do Chamado: “como você falaria disso para a sua congregação?” e “O que significa essa visão teológica para o cristão contemporâneo?” ou ainda “Como isso poderá fortalecer a fé, a esperança e a vida pessoal do seu eclesiano?”
Fiz várias vezes essas perguntas aos meus alunos em Vitória durante o ano passado. A maioria deles respondia assim: “Professor, se eu disser isso na Igreja, serei colocado para fora! não posso dizer isso na Igreja, então guardo para mim” , ou então, “Professor, isso aí não enche igreja, é tudo bobagem! a gente estuda  porque tem de estudar, mas não tem nada a ver!
Chegaram as Faculdades de Teologia, mas as Escolas de Profetas quase não existem mais. Hoje temos diplomados, bacharéis, mestres e doutores em Teologia, com títulos brasileiros; mas onde está a profecia? onde está o cuidado pastoral?
(continua)
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5 de fev. de 2010

Conversando com Deus sobre a Vocação


Senhor, estou aqui diante de Ti porque, enfim, não tenho mesmo com quem falar sem ser interrompido com análises, comentários, interpretações, justificativas e, até mesmo, observações cínicas. Afinal, sou um ser humano e Tu és o Criador; Tu me conheces melhor que eu mesmo, então não vais ficar fazendo especulações ou interpretações com base nos modismos e tendências interpretativas do coração e da mente humana. Posso falar livremente, sem preocupar-me com hermenêuticas, porque Tu já sabes mesmo do que se trata antes de eu dizer-Te. Na verdade, falar-Te é importante para mim, não para Ti que, pacientemente,  vais ouvir-me e até dizer-me o que dizer quando eu perder as palavras.
Quero deixar claro, Senhor, que me dirijo a Ti como o Pai; não é ao Filho, nem à “Espirita Santa” (eu não consigo pensar que Tu – ou Vós – só tenha atributos masculinos… ficaria complicado entender aquele papo do Gênesis “…macho e fêmea os criou, à Sua imagem, conforme à Sua semelhança, os criou …” – é algo assim! pelo menos para Ti não preciso ficar colocando as referências bíblicas).
Então, estou falando contigo, Pai!  mas às vezes posso me confundir e dirigir-me ao Filho, ou à Mãe… (essa Tua Unidade Trinitária é uma coisa complicada, que nem mesmo os Padres do Oriente e do Ocidente – que bolaram esse conceito – conseguiram entender, por mais neurônios que queimassem!)
Mas como Tu és tudo e o Todo, ao mesmo tempo és os Três e e também és cada Um, então acho que não vais Te confundir com meus enganos… Para evitar confusões, Te tratarei por Senhor (com o devido respeito pela Senhora) e fica por Tua (ou Vossa) conta e risco resolver com Quem estou falando. O papo é longo, talvez Vos tenhais de fazer um rodízio para não cansar, rsrsrs…  Ah! não Te cansas nunca! (e o sétimo dia? Não Te cansas, mas descansas? és baiano? rsrsrs… ooops! desculpe! foi só uma piadinha! Não sabia que Tu és Baiano Honorário! perdão!).
Tudo bem! …  está bem, estou Te enrolando!  É que o assunto é meio chato, aliás, nem sei como começar, por onde começar…  O começo? sim, claro, começar pelo começo! Não sabia que és também dado a chavões, Senhor! Tens senso de humor, não é, Senhor?
Pois bem, acho que o começo é quando Te encontrei … Perdão! Tu Te revelaste a mim. Aliás, já começamos meio na contra-mão, não é, Senhor? Eu andava te procurando com a minha racionalidade e Tu me deste um golpe baixo!  tiraste mesmo um sarro da minha cara, não é? – com aquele rapaz cego que testemunhou ter visto o Cristo  no momento em que eu falava sobre técnicas de estudo, naquele encontro de jovens (eles até pensavam que eu acreditava em Ti, mas eu já estava  desistindo de Te procurar – e o cego Te viu!!!  puta-que-pariu! é muito para qualquer racionalidade!).
Sim, é verdade, eu Te desafiei… mas acho que já resolvemos isso, não é? são águas passadas (ah! para Ti não passa; é tudo “já agora e ainda não”!). Ok!  faço de conta que entendo e vamos em frente, como dizem lá em Portugal, aliás onde se come um bom bacalhau … sim, Senhor, concordo que o bacalhau foi uma boa ideia que o Senhor teve, mas se não fossem os portugueses, com suas mais de mil receitas de preparo do dito cujo, não sei não…
Pois é, já passaram  40 anos desde o nosso primeiro encontro… Ah sim, Tu és Eterno! Tudo bem, mas eu não sou! Sou carne e preciso dos números para me localizar no tempo e no espaço… Ah! claro, para Ti, passado e futuro são coisas presentes! Tu és o que és! Acho que Tu te darias bem com a Física Quântica … Hummm! é imperfeita? mas quase chega lá, não é?
Então, a partir daquele dia, a minha vida entrou em reboliço. Até parecia que eu estava sendo domado por Ti, como se eu fosse um cavalo bravo e xucro ...  Ah! é? ainda sou? está bem, não vou discutir isso de novo contigo! Tu ganhas sempre!
Eu estava na minha, curtindo Te buscar pela racionalidade, pela objetividade, e já estava quase convencido que Tu não passavas de um consolo para quem não sabe lidar com a Racionalidade!  Mas aí,  Tu me apareces totalmente subjetivo! Eu falo de estudo e o cego Te vê?!?!  Pô! foi sacanagem da Tua parte, Senhor. Isso não se faz com um rapaz de 19 anos, fã de Einstein e metido a futuro cientista.
Pois é, esse é um dos problemas: sempre que eu estou chegando, sempre que estou quase lá,  Tu vens e me mostra outro caminho; com isso, eu tive de aprender que o Horizonte nunca chega, sempre anda à frente … Ah! é! ainda não aprendi … rsrsrs .
Não bastava eu ser convertido, assumido liderança entre os jovens do Movimento Encontrista, seguir minha carreira científica e dar um bom testemunho? Não! Tu vieste e colocaste no meu coração, e depois no meu entendimento, que eu teria de ser um servo! Tu me querias para servir-Te no serviço às pessoas em Teu nome! Perdão, em nome do Teu Filho! (olha, Senhor, na próxima vez, me faz nascer mulçumano ou judeu… essa Tua Regra de Três é muito enrolada! … ah! …  não tem próxima vez  …  sou cristão e não tem volta?! Tens razão! Falar árabe é complicado! e hebreu também!).
E assim, lá fui eu estudar tudo ao mesmo tempo: Ciência, Filosofia e Teologia. E ainda tive de enfrentar aquele lance de descobrir em que parte do Teu rebanho eu me encaixo. … Eu sei! eu sei! … Foi aquele Teu servo que era frade, virou bispo, arcebispo e morreu cardeal, quem me mostrou o curral a que eu pertenço (aliás, que não é o mesmo que o dele – mas como todos são da Tua  Fazenda, acaba sendo tudo a mesma coisa embora diferente – paradoxos são contigo mesmo, não é Senhor?…  calma! é só uma piadinha de matemático, Mãe!).
Aí, quando eu achava que tudo estava indo bem, veio aquele lance da política, aquela merda toda dos “anos de chumbo”: repressão, perseguição, prisão, tortura… sumiço e morte de amigos e amigas… o pessoal que se equivocou e morreu no Araguaia… amigos assassinados no Chile… Não, não quero lembrar isso! … solidão no meio da multidão (olha ai outro paradoxo!).
Tá! Tá bem! no fim deu tudo certo, mas puta-que-pariu, na hora, era uma barra, um cagaço atrás do outro… Eu sei! eu sei que Tu estavas lá com a gente, mas pô!  Tu tens uma mania chata de fazer de conta que não estás!  A gente não vê que Tu estás, e só depois é que a gente vê que Tu estavas! ….  Ah! é teu jeito? está bem, não vou discutir, mas pô! tem hora que fica muito complicado, a barra fica muito pesada! … ah! sim! eu sei, a Cruz do Teu Filho é muito mais pesada, porque tem o meu peso e mais o de toda a humanidade…
Passou! mas começou outra situação complicada. Fiquei Postulante ao Sagrado Ministério por quase 15 anos! Quinze anos, Senhor! “Recorde Mundial na Comunhão Anglicana”, quiçá na Tua Igreja toda, até hoje ! rsrsrs…  Quando eu perguntava da Ordenação, o Bispo, o Conselho Diocesano, o sei lá o quê da estrutura eclesiástica, criavam burocracias absurdas, ou exigências das mais complicadas. E lá ia eu atrás de novo, e de novo o Horizonte se afastando… Aí, eu desisti de pensar nisso ou de cumprir qualquer outra burocracia. Nós conversamos, eu me lembro, e eu disse que se fosse da Tua Vontade que eu fosse Ordenado, eu seria! Tu darias um jeito. E mandei a burocracia eclesiástica às favas (dei um “fôda-se”  para ela), e parti para a construção da minha carreira profissional.
Ah! é! … teve aquele lance, antes, com o meu querido professor de Teologia Sistemática, e que era meu Pároco na São João. Fui pedir a ele a tal carta de recomendação e ele, na maior cara de pau, se negou a dar-me!!! Fui falar com ele umas dez vezes, enchi o saco dele… até que ele me explicou porque não daria a tal carta (e não deu mesmo!): “Não é contra ti, Caetano! Não tenho nada contra ti! Mas a Igreja não te merece! Alguém como tu vai se dar mal na Igreja!”  - foi o que ele disse e  se negou a dar mais explicações… Sim, eu sei, ele está aí contigo e feliz! …  Fazendo música, é? bem, foste Tu quem deste esse dom para ele …  teologia também? ele gostava muito disso! … certo! ele gosta!
Lembra, Senhor, daquela aventura missionária, em Dourados? Que situação mais irracional  tu usaste para me chamar (ou me mandar?) para lá! Não vem ao caso lembrar os detalhes, é maluquice demais… Mas fui o primeiro Leitor-Leigo autorizado a distribuir o Sacramento Reservado; também provei a solidão, a cultura diferente, o convívio com os Terenas e os Caiuás na Missão Presbiteriana, o enfrentamento com a máfia das drogas, as ameaças de morte… morar seis meses na Capela São Pedro, em um bairro distante do centro, dormir no chão da capela… o choque de minha mãe e de meu irmão, em visita surpresa, ao descobrirem as condições em que eu vivia e decidirem pagar um Hotel/Pensão, para eu morar com um pouco de decência e conforto.
Foi lá Senhor, eu sei, que eu entrei na forja! e Tu malhaste duro, sem piedade! mas, ao mesmo tempo, eu sentia – e muito – a Tua Presença, dando uma coragem que até hoje não compreendo como fui capaz de fazer o que fiz. Foi o ano em que Tu moldaste meu ministério e me preparaste para o exercício do Sacerdócio de Teu Filho.
Mas, a burocracia eclesiástica travou novamente o meu processo, eu estava divorciado… moralismos …  É, eu sei! isso é coisa antiga! até Teu Filho teve de se aborrecer com os moralistas … Mas nós já havíamos tido aquela conversa: se Tu quiseres, eu serei Ordenado com ou sem burocracia e moralismos … Eu não faria mais nada para isso, ficou tudo nas Tuas Mãos! (por falar nisso, Senhor, quantas mãos tens? É tanta gente a colocar tudo nas Tuas Mãos … ah! sim! infinitas! saquei!)
Então, Senhor, anos depois, estava eu muito tranquilo, vivendo em Londrina, Leitor-Leigo na São Lucas,  não pensando mais na tal da Vocação, cuidando da possível carreira acadêmica e científica que estava começando,  fazendo a Pós, já aceito para o Mestrado (com certo estranhamento, pois  a Academia já me parecia um universo fechado, de gente arrogante, embora a Matemática e a Física ainda não estavam totalmente  contaminadas – mas vinham me encher o saco com aquele papo de ciência e religião).
Pois é,  de novo, Tu chegas para tirar meu sossego.  Para variar, me colocando numa saia justa! … Não ri não, Papai!  Fiquei numa saia justa sim!!!
Era o Concílio Diocesano; eu, delegado leigo, Segundo Secretário, sentado à esquerda do Bispo. Estou lá rascunhando a Ata, e já era a sessão final, os tais “Outros Assuntos”. Eis que pede a palavra o meu querido ex-professor de Grego e Hebraico, Arcipreste Emérito;  do alto de sua autoridade moral, se dirige ao Bispo e  pergunta: “Bispo, por que o senhor não ordenou ainda o Prof. Caetano?”  e teceu enormes elogios à minha apavorada pessoa. Sim! apavorada, porque ficou parecendo uma armação minha com ele…  Ficou aquele cheiro de cú queimado no plenário, o Bispo sendo inquerido sobre algo que – naquela altura do meu processo – era assunto pessoal e exclusivo dele. O Bispo deu lá sua explicação, que bastava a tal carta de apresentação por um ou dois presbíteros, eu requerer a minha Ordenação, e submeter-me ao exame médico e psicológico, e ao exame da Junta de Capelães.  Na mesma hora o Arcipreste redigiu e assinou a tal da carta, e vários outros se ofereceram para assinar também.  Pronto! Já queriam marcar minha Ordenação naquele mesmo trimestre. Eu tive de pedir ao Bispo esperar quase um ano, para eu concluir a Pós, e reorganizar minha vida. Pois é, Senhor! eu sei, era a Tua vontade atuando! Mas, caramba, tinha de ser assim, naquela correria toda? tinham passado 15 para 16 anos… e de repente, em três meses, eu receberia o Diaconato.
Lembro, Senhor, da Ordenação! Completei 24 anos em maio passado, jubileu de prata este ano! Cheguei no domingo pela manhã na São Lucas, em Londrina, e o pessoal me chamava Prof. Caetano, senhor Caetano, ou só Caetano. Duas horas depois, todo mundo me tratava com certa reverência e me chamava Rev. Caetano, ou Caetano Sei-Sei, como diziam os mais velhos daquela comunidade, cuja base é a colônia japonesa.  E com direito a vênia!  Até meus colegas de magistério na Universidade, presentes à cerimônia, me tratavam diferente. Na época, Senhor, eu vinha do movimento sindical, havia sido dirigente, estava muito ligado na tal Teologia da Libertação, tentava dizer a todos que eu era o mesmo de antes… demorei  para entender que eu não era mais o que era antes, o povo estava certo.
Lembro da angustia da segunda-feira, já sem a festa e os convidados. Eu olhei para o templo da Paróquia São Lucas e ai caiu a ficha que nunca mais eu entraria lá como Caetano, mas como Rev. Caetano, coadjutor naquela Paróquia, Diácono na Igreja de Deus, servo da Comunidade em Jesus Cristo, sinal do Teu amor para com todas aquelas pessoas e as demais que Tu colocares diante de mim. Por sorte, um Presbítero (hoje Bispo aposentado; na época, Secretário Geral da Igreja),  que participara da cerimônia, ficou mais um dia comigo e me ajudou a refletir quando tive o choque da tomada de consciência que eu já não era mais aquele que eu havia sido até então.
Mais tarde, depois de ordenado Presbítero, eu exercia uma tarefa que ninguém mais na comunidade poderia exercer: eu era, e sou, diante da Igreja reunida, o sinal da Presidência do Teu Filho, aquele que serve a todos na Consagração do Pão e do Vinho.  Sou, como os que são Presbíteros, Sacerdotes, aquele que veste a estola sobre os ombros, representando  a canga – o jugo – do Cristo. Tenho de ser, Senhor, o sinal da Cruz e da Ressurreição para a comunidade que Tu reúnes e entregas a mim na comunhão com meu Bispo e assim, com toda a Tua Igreja.
Pois é, Senhor… o tempo passou … Sei! para Ti não passa! és Quântico! rsrsrs!
Fui Reitor da área do Litoral Sul-Catarinense, atendia as Paróquias de  Cristo Redentor (Araranguá) e Páscoa (Praia Grande), a Missão em Torres, e começamos  a comunidade de Florianópolis.  Conhecia aquela parte da BR-101 como a palma da minha mão.  Quanta coisa, não é Senhor? Quanto eu vibrava com o ministério, com os estudos da Bíblia, com as ações comunitárias, o Clube de Mães, a catequese das crianças (com muitas conversas sobre ciência), a participação cidadã … Ah! obrigado! Tu gostavas também! … obrigado!
Foi o tempo de pastorado, de total entrega nas Tuas Mãos, onde o dinheiro do salário chegava no dia D (até o dia C, o caixa estava zerado, mas ai Tu davas um jeito!), onde, nas emergências de saúde, Tu sempre vinhas com a Tua Santa Providência … Sim! Te sou muito grato por aqueles anos, Senhor.  Os Encontros Momento Novo, a Ordem de São Tiago de Jerusalém … sonhos, encantos, descobertas, e coragem! Novos horizontes! … Sim, muito obrigado mesmo, Senhor!
Mas fui chamado para assumir o Seminário em Porto Alegre, não é Senhor? pois é, eu estava muito feliz no pastorado, mas lá veio Tu de novo… e eu fui parar na burocracia eclesiástica! Voltei a fazer as coisas que fazia alguns anos antes, quando era executivo em empresas ou professor! Só que ganhando muito, mas muito menos! … Sim! sim! não me faltou nada, Tu sempre proveste tudo! Não estou reclamando, só comentando …  Como? que arado? … Ah! aquela palavra do Teu Filho, de não olhar para trás ... Tá bem, tá bem! não comento mais nada!
Era óbvio, não é Senhor? o meu entusiasmo com as possibilidades do Seminário, desenvolver uma academia anglicana para a América do Sul … fora isso que o Primaz pediu quando me chamou para a tarefa!  Mas o que aconteceu? lá veio a burocracia eclesiástica, a política eclesiástica, o desencanto e … chutei o pau da barraca! Fôda-se! … Não, não é para Ti que eu digo, mas para aquela burocracia eclesiástica… aquela politicagem nojenta… Ah! Tu dizes o mesmo?! pôxa! concordamos uma vez, pelo menos!
Pois é! mas assim eu pude voltar ao ministério paroquial. … Sim, e foi uma coisa atrás da outra! De novo em Santa Catarina, depois em Portugal, depois Brasília e então… putz! então o CLAI … Pois é, Senhor, sempre encantos e desencantos! meus últimos 20 anos… encantos e desencantos! quando estou chegando, Tu mudas o caminho… sempre, sempre tendo de descobrir a Tua Santa Vontade!
O que eu queria dizer Senhor, nisso tudo, para acabar com esse papo longo porque tenho de almoçar, é que sempre que eu achava que estava tudo bem, que estava vivendo a minha vocação,  fazendo aquilo que sei fazer e faço bem! … obrigado! concordamos de novo! … rsrsrs!  Então, quando penso que o horizonte se abriu …  Não, não é que fecha, mas parece que ele se afasta, tudo muda de repente!  e eu volto a ficar na dependência de entender a Tua Vontade!
Está bem! … sei que me amas, Senhor! não duvido! … mas não é fácil viver sempre diante dessa questão: qual a Tua Vontade? … Eu sei! Tu nunca disseste que seria fácil! Mas…
Outra hora o Senhor me explica isso direitinho. Agora tenho de ir almoçar! Muito obrigado, Senhor pela tua Santa Paciência! Em nome de Jesus, Amém!

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