Este artigo é resultado de uma reflexão que temos feito na Paróquia São Paulo Apóstolo, como companheiros de ministério e partilhado com algumas lideranças leigas da paróquia, no contexto do Clamor pela Igreja que a comunidade tem realizado dominicalmente desde o Pentecostes. Trata-se de um texto pessoal de nossa exclusiva responsabilidade, e não reflete, necessariamente, o pensamento da comunidade paroquial, da Diocese Anglicana do Rio de Janeiro ou até mesmo da Ordem de São Tiago de Jerusalém, na qual partilhamos esperanças e temores.
Depois dos últimos acontecimentos na IEAB, resolvemos partilhar nossa reflexão sobre a eclesiologia em que se fundamenta a nossa Igreja, que – nos parece – vem sendo esquecida por setores do clero e do laicato.
Primeiramente, temos que esclarecer o que é Eclesiologia? (do grego ekklesia= Igreja; Logia= Discurso). É o ramo da Teologia Sistemática que trata da Igreja: seu papel na salvação, sua origem, sua doutrina, sua disciplina, sua forma de se relacionar com o mundo, sua presença social; e também as mudanças ocorridas, as crises enfrentadas, a relação com outras denominações e sua forma de governo.
A Igreja é objeto e sujeito da fé, institucional e carismática (dons), sociedade visível e comunhão invisível, comunidade fraterna e hierárquica, santa e pecadora; a Igreja de Cristo se apresenta como diversidade de confissões e comunhão dialogal entre elas.
Levando em conta tal complexidade queremos, de início, identificar as questões mais importantes que surgem dos contextos episcopal e anglicano. Tais questões ajudam a reconhecer a pertinência desta reflexão: atualizar o tema “Igreja” neste emaranhado de realidades e conceitos.
Nessa perspectiva, lembramos Dom Sumio Takatsu que, brilhantemente, nos recorda que a Igreja Episcopal Anglicana não caiu do Céu; foram anos de construção, idas e vindas, uma identidade “católica” e “protestante”, chegando à via média que tentamos ser.
Em se tratando do anglicanismo, sua auto compreensão não pode passar por cima da Reforma do século XVI nem de sua continuidade com a Igreja da antiguidade, vista sob a ótica do conhecimento disponível nos séculos XVI e XVII. “Desde o seu começo, o anglicanismo tem sido formado na forja da controvérsia eclesiológica”. De fato, o primeiro Sínodo da Igreja da Inglaterra em Whitby (664) foi uma controvérsia em torno da data da Páscoa entre a Igreja celta e romana representada por Agostinho, enviado pelo bispo de Roma, Gregório Magno. Muito mais tarde, no século XIV, John Wycliff e seus seguidores desafiaram o conceito do domínio que cada pessoa e ofício têm recebido do seu superior imediato. (Takatsu, Eclesiologia Anglicana, pg. 1)
Neste aspecto queremos salientar que a tensão entre Igreja Celta e Igreja de Roma no séc.VII foi o final de um processo que vem de mais longe, do início da cristianização das Ilhas Britânicas.
Se alguém pensa que somos filhos somente da Igreja Ocidental, está enganado. Somos, também, filhos da Igreja Oriental. Foram missionários da Igreja do Oriente que converteram, de início, os celtas, passando para eles a eclesiologia e a teologia cristã orientais. Assim, nossa percepção teológica e cosmovisão, têm origem nas concepções orientais, cheias de misticismo e variações, enfatizando a relação com a natureza de maneira bastante séria e encarnada.
Quem, no séc.VII, vence a polêmica na região sul e sudeste da Grã-Bretanha, sob domínio saxão, é a Igreja de Roma, mas o oeste e o norte, (habitados majoritariamente pelas diversas tribos celtas que resistiram ao Império Romano) mantiveram as concepções teológicas do oriente cristão. Por isso vamos falar um pouco da Eclesiologia Oriental para entender nossa pluralidade de conceitos.
As Igrejas Orientais (Ortodoxas), em geral, têm uma organização muito interessante e sadia, fundamentada no principio real da Catolicidade (Universalidade) da Igreja. Tais Igrejas se sobrepõem através de diversas jurisdições eclesiásticas (como por exemplo a Igreja Ortodoxa Grega, Igreja Ortodoxa Eslava, a Igreja Ortodoxa Siríaca, etc.) que professam a mesma fé e, com algumas variações culturais e étnicas, praticam basicamente os mesmos ritos. O líder espiritual das Igrejas Ortodoxas é o Patriarca de Constantinopla – chamado de Patriarca Ecumênico, embora este seja um título mais honorífico, uma vez que os patriarcas de cada uma dessas igrejas são independentes. A maior parte das Igrejas Orientais, em comunhão umas com as outras, usam o rito bizantino e suas variações.
Para eles, o Chefe Único da Igreja, e sem intermediários, representantes ou legatários, é o próprio Jesus Cristo. A autoridade suprema na Igreja Ortodoxa é o Santo Sínodo Ecumênico que se compõe de todos os patriarcas chefes das igrejas autocéfalas e os arcebispos primazes das igrejas autônomas, que se reúnem a chamado do Patriarca Ecumênico de Constantinopla (cf. Koubetch, Da Criação à Parusia, linhas mestras da teologia cristã oriental, p. 103).
A autoridade suprema regional em todos os patriarcados autocéfalos e igrejas autônomas é da competência do Santo Sínodo Local. Algumas igrejas autocéfalas possuem o direito de resolver todos os seus problemas internos com base em sua própria autoridade, tendo também o direito de ter seus próprios bispos, incluindo o próprio patriarca, arcebispo ou metropolita que presida essa Igreja.
Este característica foi herdada pela nossa Tradição oriunda da Igreja Celta: o mesmo princípio que nos rege como Igreja sinodal e o exercício do Primado. O Arcebispo de Cantuária, por exemplo, não é o Vigário de Cristo nem chefe supremo da Comunhão Anglicana; da mesma forma, nosso Bispo Primaz é o “primus inter pares” (primeiro entre iguais) com os demais Bispos Diocesanos.
A Igreja Oriental nos legou outro aspecto eclesiológico através da Igreja Celta: um tipo de comunhão que estamos esquecendo, a Comunhão (koynonia) em Amor a Deus e a Unidade Eucarística. Temos dificuldade em vivermos, hoje, uma comunhão em Amor, pois ficamos sempre lembrando da nossa raiz ocidental, hierarquizada, monarquista e clericalista ao extremo, e esquecemos de nossos pés no oriente, primeiro em Jesus, e depois na Tradição Oriental, através dos cristãos celtas vencidos no Sínodo de Withby (séc.VII).
A Igreja Celta expressava sua comunhão com Deus e os outros, no amor e respeito mútuo, sem hierarquia absolutas. Assim, o bispo era bispo para fundar comunidades e ordenar, os abades organizavam e conduziam a Igreja Diocesana, os monges e padres cuidavam das comunidades, os diáconos ajudavam os padres e monges neste cuidado e o centro da vida era o mosteiros junto às aldeias, onde todos se reuniam para partilhar a suas experiências e traçar suas metas missionárias. Foi uma tentativa de resistir ao avanço da cosmovisão de Roma, marcada pelo Império. Assim, os cristãos celtas buscavam a colegialidade em amor e respeito mútuo, oriundo da eclesiologia oriental que, conforme Dom Koubetch nos explicita:
Do amor surge a comunidade como adesão pessoal e livre à fé professada de todo o povo. Provem do amor (que reúne, assemelha-se) […]. O ideal que está na base do conceito de amor é a realidade da comunhão, daquele fato resultante da unitotalidade e da unipluralidade, pela qual muitos são um, mas permanecendo pessoas diversas e livres. (Koubetch, Da Criação à Parusia, linhas mestras da teologia cristã oriental; p. 116).
Tal é nosso legado: uma relação de amor entre iguais, apesar de diferentes. Cada um com sua função e ministério diferente, mas sua ação e respeito eram únicos, visando a evangelização aos não cristãos e respeitando a diversidade cultural de cada localidade.
Isso significa ainda que a Igreja é simultaneamente uma reflexão que motive o ser humano a ser mais amoroso (ágape) em relação ao outro, ao cosmos e a Deus. A linguagem mais adequada para se aproximar deste mistério fundamental é a Teologia da Encarnação, algo específico para a comunidade cristã oriental. A teologia que nós herdamos do oriente através dos celtas, vive a tensão entre poder falar de Deus, pois Ele mesmo se revelou (dimensão katafática = revela-se a Si mesmo), e reconhecer que todo discurso sobre o Senhor não consegue abranger a grandeza e a profundidade do Divino (dimensão mysterium = o que está oculto, porém presente e perceptível).
Por ser uma reflexão sobre o Amor, a partir da diversidade, visando tornar o ser humano mais amoroso, a Teologia não pode lidar somente com conceitos. A história da Igreja, especialmente a partir das igrejas orientais, mostra uma grande conquista: o refletir sobre Deus a partir de conceitos abalizados no mistério. A Igreja necessita recorrer ao seu passado (Tradição) para lembrar do caráter testemunhal e lançar mão das analogias entre vida e fé. Só assim, numa pluralidade de linguagens e abordagens, deixar-se-á tocar pelo mistério amoroso de Deus.
Assim, não correremos o risco de cometer o erro de pensar em absolutos imperiais, os quais nunca fizeram parte da nossa Tradição Herdada, mas nos mantemos firmes em seu aspecto mais puro e embrionário, uma comunidade (comum-união) de amor, que expandiu o cristianismo não só nas ilhas britânicas, mas também entre os povos germânicos, francos e parte dos povos nórdicos. É interessante notar onde houve um contato com os monges missionários cristãos celtas de alguma forma foi criado um cristianismo independente de Roma através de vários movimentos de reforma até chegar na Reforma no século XVI, uma renúncia ao Tomismo que marcou profundamente a Igreja Romana.
Por isso, é estranho perceber, em nossa Igreja Episcopal Anglicana, tendências de entender o Episcopado como poder centralizador e absoluto, disputado por grupos de interesse, partidarismos e encobrindo vaidades e projetos pessoais.
Mesmo a Igreja da Inglaterra, que não é nossa ancestral direta, mas indireta, que se expandiu através do Império Britânico, expansionista e colonialista, a partir do século XVII, teve o bom senso de estabelecer nas colônias Igrejas indígenas promovendo o desenvolvimento de clero local, inclusive episcopado, não vinculando a Missão à autoridade absoluta da Igreja Imperial. Segregacionista ou não, nas colônias inglesas sempre houve uma diferenciação entre a “igreja dos ingleses” e as nascentes igrejas de influência “anglicana” nas colônias, fiéis à sua concepção de não admitir ingerência estrangeira nas igrejas locais (cada povo, sua igreja).
Esse espírito marcou a formação da Igreja Episcopal dos Estados Unidos, que não foi uma simples mudança de nome, mas uma união de diferentes confissões nas 13 Colônias, dando origem a uma Igreja de identidade nacional, respeitando inclusive a liberdade daqueles que preferiram manter-se independentes, em sua própria identidade confessional. Assim, ao surgirem como nação independente, os Estados Unidos já nascem com uma diversidade religiosa marcada pela liberdade de culto. É essa a visão eclesiástica que chega ao Brasil em 1889 com Morris e Kinsolving. Fiel ao seu próprio princípio fundante, a Igreja Mãe logo providencia o episcopado próprio para o Brasil, mesmo na pessoa dos missionários e ainda atrelado à estrutura da Igreja Mãe, mas sempre apontando o horizonte da emancipação, que começa de fato em 1950, com a eleição dos primeiros bispos nacionais (Pithan, Simões e Krischke).
Portanto, choca-nos perceber, nas recentes disputas pelo Episcopado, a incidência de projetos personalistas e de interesses pessoais, forçando inclusive interpretações das normas canônicas, aparentando uma visão absolutista do poder e/ou querendo impor padrões e dinâmicas de comportamento que são até mesmo estranhos à nossa Tradição Herdada. Perde-se o referencial evangélico, “o maior aquele que serve” (cf. Marcos 9.30-37 e par). Neste 17º Domingo depois de Pentecostes, Tiago o Justo, irmão de nosso Senhor, nos recorda em sua epístola:
Contudo, se vocês abrigam no coração inveja amarga e ambição egoísta, não se gloriem disso, nem neguem a verdade. Esse tipo de "sabedoria" não vem do céu, mas é terrena, não é espiritual e é demoníaca. Pois onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males. Mas a sabedoria que vem do alto é antes de tudo pura; depois, pacífica, amável, compreensiva, cheia de misericórdia e de bons frutos, imparcial e sincera. O fruto da justiça semeia-se em paz para os pacificadores. (Tg 3.13-18 – Nova Versão internacional).
Rev. Daniel Rangel Cabral Jr,ost+ e Rev. Luiz Caetano Grecco Teixeira, ost +
A minha pergunta é a seguinte: Será que os líderes da Igreja Episcopal Anglicana conhecem a riqueza história contida nesse texto? Das duas uma: Ou não conhecem ou tiveram amnésia coletiva. Só uma dessas respostas justificariam a confusão que estamos vivenciando hoje.
ResponderExcluirTiago 3:13-18, descreve com requintes de detalhes essa terrível situação. Será que "eles" também não leram?
Parabéns aos Revs. Daniel Rangel Cabral Jr ost+ e Luiz Caetano Grecco Teixeira ost+, pela coragem de dar voz aos nossos pensamentos.
Simoninha, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirNa verdade, a história é conhecida, e o problema não está na nossa liderança como um todo, mas a meu ver, no vazio de reflexão teológica que se instalou na maioria das Igrejas Históricas. Não é só a Igreja Episcopal que vive essa crise de identidade, mas a totalidade das Igrejas Históricas brasileiras e latino-americanas, e até mesmo alguns setores pentecostais, e isso não é de hoje, mas um processo que vem acontecendo nos últimos 15 anos pelo menos.
O espírito da pós-modernidade e o pensamento neoliberal que minam a sociedade ocidental provocam esse esvaziamento civilizatório criando a cultura do "achismo" e do individualismo como absolutos.
Com certeza a liderança da Igreja está atenta e preocupada com essas coisas. A dificuldade é como reagir e reverter tal processo que é social e abala todos os aspectos de nossa civilização. Nesse sentido, o espírito do nosso texto acima é de motivar a reflexão e dar uma modesta contribuição.
Por isso, clamamos em favor da Igreja pois, afinal, a Igreja Episcopal, assim como todas as demais que realmente fundamentam sua ação e pregação no Evangelho, pertencem ao Senhor! Creio que o Senhor está se movendo e em movimento de RE-NOVAR a Sua Igreja. Renovar não é fazer algo novo, mas tornar novo o que ficou velho...
Como os antigos celtas, precisamos "ouvir" nossos ancestrais na fé e também dobrar o joelho para colocarmo-nos diante do Senhor em profundo silêncio e ouvir a Sua Voz.
Junte-se a nós nessa oração!
Esta é a minha resposta; talvez o Rev. Daniel queira também se manifestar sobre o teu comentário.
Paz e Bem!
Luiz Caetano, ost+