19 de set. de 2012

Eu não sou “anglicano”!

Já fui! não sou mais! Prefiro ser o que era antes, desde que entrei na Igreja, que na época chamava-se Igreja Episcopal do Brasil (IEB), e alguns anos antes do meu ingresso ainda era Igreja Episcopal Brasileira. 

Sou Episcopaliano, ou como se dizia antigamente, sou Episcopal.  Estou com saudades da Igreja que eu conheci e que hoje parece estar moribunda!

Saudosismo decorrente da idade? Não! indignação por ver deteriorarem-se os valores que tocaram meu coração e me fizeram um apaixonado pela Igreja Episcopal, meu espaço de comunhão íntima com Deus, em comunidade!

(Aqui novamente peço a compreensão dos leitores não episcopalianos ou anglicanos por tratar de um assunto muito específico… mas talvez essa reflexão possa ajudá-los a refletir sobre suas próprias denominações)

O problema é que sob o substantivo (ou seria adjetivo?) “anglicano” se identificam muitas coisas, denominações e seitas, e adjetivos complementares sem qualquer nexo (anglo-qualquer-coisa)! Ou seja, não sei mais o que significa “anglicano” hoje! Antes era uma Comunhão! mas agora parece ser uma confusão!

Não nasci na Igreja Episcopal, mas a descobri por indicação de um Bispo Romano, amigo de minha família, aos 19 anos. Conheci a Igreja Episcopal e nela encontrei acolhida e espaço para desenvolver minha espiritualidade de recém convertido a Jesus Cristo, isso há 43 anos. Cresci muito na minha fé e espiritualidade graças à saudável combinação de Sacramento e Palavra, Liturgia e Escritura. Fui me tornando episcopaliano lentamente, de forma sadia, descobrindo as imensas riquezas da Igreja em sua diversidade. Não havia a frieza protestante da concentração racional na Palavra, nem o vazio de conteúdo dos ritos romanos cujos padres, à época, tratavam o povo como criança nos “sermões”.  Aprendi a conviver com os diferentes dentro do espírito de comunhão em Cristo e pertença a uma Comunidade cuja diversidade é sua identidade.

As diferenças não eram partidarismos, mas expressões de diferentes maneiras de viver a espiritualidade cristã, e isso não criava muros de separação nem de discriminação. Convivíamos todos em meio a um saudável clima de amizade solidária e bons debates teológicos sem que houvesse qualquer teor de personalismos e individualismos. Ninguém se autoproclamava dono da verdade, mas a Verdade se expressava em meio à diversidade de compreensões e experiências.

Era uma igreja ufanista, infantilmente ufanista! não era um ufanismo de poder, mas de imitação e auto identificação com a Igreja dos EUA; mas, ao mesmo tempo, havia o fato que, em nosso meio, todos eram bem acolhidos – antes mesmo de inventarem a tal inclusividade. Uma Igreja que crescia lentamente pela adesão de pessoas inteligentes que buscavam uma alternativa de vivência cristã engajada e espiritualidade solidária. Havia muitos problemas, falta de visão e planejamento e alguns personalismos, mas isso não nos afastava uns dos outros. Nós brincávamos com as nossas diferenças em clima de real amizade e verdadeira solidariedade. Nas reuniões litúrgicas ou de estudo das diferentes comunidades percebia-se claramente forte piedade e senso de compromisso.

Eu costumo dizer – e isso aprendi com meus mestres – que o nosso “ethos” não se aprende pela razão através de manuais ou confissões doutrinárias, mas através da vivência com a diversidade da Igreja, tendo o Quadrilátero de Lambeth-Chicago como pano de fundo. Apesar de toda pompa que havia em alguns cerimoniais das comunidades mais litúrgicas, havia uma simplicidade que se traduzia no acolhimento carinhoso de todos por todos. E apesar da simplicidade de comunidades mais próximas ao universo protestante, havia uma profunda piedade e reflexão a partir da Palavra de Deus e da Tradição Cristã com suas muitas vertentes. 

O clero não era arrogante, mas quase todos eram bons pastores, curas de almas como se dizia. Os Bispos eram homens simples, próximos, com senso paternal e ao mesmo tempo exerciam sua autoridade de forma segura e madura, embora em sua grande maioria tentassem centralizar a administração e não estavam preparados para isso; todavia, não estavam contaminados pelo espírito de príncipes ou da verticalidade hierárquica romanista. A Igreja se expressava através das dioceses, e o conceito de Província era muito mais um símbolo de unidade eclesial que burocracia estrutural eclesiástica e curial!

Como na maioria das Igrejas Históricas, a reflexão teológica existia e se expandia a partir do Seminário, ao qual fui admitido como estudante avulso (e pagava regularmente minha mensalidade sem descontos) quase ao mesmo tempo em que fui recebido na Igreja, porque eu pretendia estudar Teologia e buscar horizontes vocacionais – razão pela qual o Bispo amigo de minha família, um bom pastor, me sugeriu conhecer a Igreja Episcopal. O STIEB (Seminário Teológico da Igreja Episcopal do Brasil), na época sediado em São Paulo, era espaço ecumênico por excelência, tanto em nível docente quanto discente.

O lento aprendizado sobre o ser da Igreja Episcopal (“ethos”), a sabedoria pastoral do clero e dos Bispos com quem convivi, em verdadeiro espírito de companheirismo, fez minha vocação amadurecer por 14 longos anos de postulantado, mais um ano como Candidato às Sagradas Ordens. O fechamento do Seminário complicou minha formação teológica regular, mas graças ao carinho dos antigos professores e do Bispo Takatsu, fui estudando Teologia em diferentes instituições, e no então nascente IAET, sob a tutela do próprio Bispo, sempre às minhas próprias expensas (nunca fui bolsista da Igreja). Na mesma época eu estudava filosofia, economia e depois matemática;  trabalhava para me manter (fui analista de sistemas da primeira geração no Brasil); militava no movimento estudantil e no movimento ecumênico que era pouco institucional. Tempos da repressão e da ditadura militar, a Igreja (a bem da verdade, uma boa parte das Igrejas, não só a IEB) era espaço de resistência política, de reflexão ética e também de refúgio para os perseguidos.

Os tempos mudaram, a Igreja também…

Perdemos, cada vez mais, o senso salutar de diversidade em comunhão; aquilo que deveria ser simplesmente estilo e ênfase decorrentes de uma vivência pessoal ou comunitária ("churchmanship") vem se tornando movimento partidário provocador de desunião e antipatias, sendo profundamente segregacionista; já nos trouxe um cisma (Recife) e nos coloca sob risco de outros.  Tenho visto clérigos e seminaristas assumindo modismos e "tradições" sem realmente terem clareza do conteúdo - muita pompa e pouca igreja! Aproveitando uma ideia de Kierkegaard,
“A fé não é, pois, um impulso de ordem estética; é de outra ordem muito mais alta, exatamente porque pressupõe resignação. (...) Pois é necessário possuir força, energia e liberdade espiritual para efetuar o movimento de fé.” (in Temor e Tremor)
tenho para mim que preocupações exageradas quanto à forma indicam pouco ou nenhum conteúdo...

O problema da IEAB, e das Igrejas Históricas em geral, é que estão se tornando Igrejas Histéricas e Estéreis (e incluo também a Igreja de Roma) diante da onda neoliberal do individualismo e da prosperidade a qualquer preço. As Igrejas tentam compreender e enfrentar o mundanismo da pós-modernidade a partir de análises “científicas",  esquecendo-se que antes é preciso colocar-se de joelhos, e clamar pela Luz que vem do Alto...

Precisamos recuperar o senso de piedade salutar, ao invés de buscarmos modismos estéreis; deixar de catar a esmo riquezas do baú da Tradição Herdada sem refletir sobre as origens da Tradição; e parar de brincar com identidades que mal compreendemos ou são estranhas à nossa história e formação cultural como brasileiros e membros de uma Igreja que se enquadra historicamente no conceito de Protestantismo de Missão, embora tenhamos algo a ver também com o Protestantismo de Imigração, especialmente na região de São Paulo e Norte do Paraná (comunidades de origem japonesa).

Aposta-se hoje no crescimento da Igreja em termos da quantidade de gente atraída pelos artifícios do “marketing da bênção” e da venda de sacramentos para a vaidade da classe média decadente (“casar na Igreja do casamento do Príncipe!”), crescimento rápido sem conteúdo, clientela consumidora de rituais e de personalismos clericais ao invés de fiéis a Jesus Cristo. Há uma necessidade de expandir o mercado e atingir novas clientelas, bem de acordo com a proposta do neoliberalismo que assola o mundo. Tudo isso em busca de “recur$o$”  para garantir a sobrevivência de uma instituição que, nos últimos 35 anos, foi incompetente na gestão do enorme patrimônio legado pelas gerações passadas!

Eu entendo que a IEAB precisa se libertar de estruturas tacanhas que servem a interesses pessoais no "jogo de poder" insensato. É necessário fortalecer os ambientes diocesanos ao invés de, por exemplo, uma pretensa cúria nacional centralizadora e altamente estruturante que pretende vincular a si toda as articulações e ações da Igreja; o conceito de Igreja Nacional, na tradição que herdamos dos nossos fundadores diretos (missionários da hoje TEC – The Episcopal Church, E.U.A.), é mais voltado ao senso de unidade solidária que estruturas burocráticas. 

Note-se que a própria TEC está revendo suas opções estruturais retornando gradualmente ao conceito fundante do séc. XVIII: Igrejas Diocesanas com forte senso missionário, abrindo mão da enorme estrutura, caríssima, que por muitas décadas desenvolveu. Interessante ver esse senso de autocrítica na TEC, um exemplo para sua mais dileta filha na América do Sul... O excesso de burocracia estrutural, naquilo que deveria ser infra-estrutura, acaba gerando espaços ilusórios de centralização do poder em diferentes níveis e cultivam a cobiça...  (sobre isso veja meu relatório transformado em documento conciliar da Diocese Anglicana do Rio de Janeiro, datado de 2011 < clique aqui > 

Eu gostaria de propor que tivéssemos oportunidades de encontros do clero, em caráter sacramental, não para ouvirmos sumidades teológicas, sociológicas, técnicas ou de caráter social, mas como oportunidade de partilha em oração, intercessão mútua, troca de experiências pastorais e dividir a carga entre nós todos, não deixando apenas nas costas do episcopado, "suportando-nos (dando suporte) uns aos outros em amor..." (cf. Efésios 4.2).

Eu até estava me animando com a ideia de um futuro Encontro Nacional do Clero, mas isso acabou se tornando um evento formal, criado pela boa vontade de algumas pessoas, mas dentro da estrutura burocrática e hierárquica, com uma agenda elaborada a partir de velhos paradigmas. Eu esperava que houvesse um processo a partir dos grupos clericais locais e diocesanos, para exercitar a partilha e a convivência fraterna há muito perdida, até chegarmos ao momento da partilha ampla e nacional; um processo que estava surgindo de forma espontânea mas que foi atropelado pela burocracia institucional viciada em fazer as coisas estruturalmente, apesar da boa vontade e boa intenção das pessoas que tomaram à frente na organização do evento. Agora teremos mais um evento na agenda da estrutura nacional, profundamente artificial, do qual não me sinto animado em participar: já tem até uma agenda de atividades totalmente elaborada, tudo muito bem enquadrado… não questiono a boa intenção, mas a forma como a coisa foi encaminhada,

Parece que a Igreja, orgulhosamente auto identificada como “anglicana” e lamentando a existência de tantos outros “anglicanos”, acabou perdendo sua identidade mais original, de comunhão na diversidade, de autoridade dispersa e compartilhada, de vocação profética, de dons e ministérios geridos pelo Espírito Santo que – na minha maneira de percebê-Lo – é adverso a toda burocracia, pois sopra onde quer! (será que estou ficando pentecostal??? em tempos de neo-pentecostalismos histéricos, é até profético ser pentecostal!).

A Igreja está se perdendo na confusão dos partidarismos e da mesquinharia personalista de disputas internas: o poder não para o exercício da autoridade como serviço, mas como afirmação de poder pelo poder! E ninguém se dá conta que tal poder é tão ínfimo e sem consistência a não ser a ilusão da pompa e da circunstância!

Com tristeza leio Amós 4.4-13 e vejo ai um paralelismo com nossa história mais recente; temos deixado de lado a oração e a penitência, a busca de Deus e a santa obediência, seduzidos pelo demônio do sucesso a qualquer preço aliado ao desespero da auto $ustentação! Nessa busca desesperada, caçamos inspiração não em nossa própria Tradição, mas na cópia de receitas pouco salutares dentro do baixo evangelicalismo ou em imitações tacanhas de um romanismo velho e caduco, cheio de símbolos vazios, deslocados de nossa realidade e história, tudo para aumentar a clientela.

Mas eu confio no movimento do Espírito. Deus está se movendo e não nos deixará naufragar no mar de nossas própria confusões. Portanto, preparemo-nos todos para encontrarmo-nos com nosso Deus e Senhor (cf. Amós 4.12), mas confiemos também em Sua misericórdia e promessa quando afirmou que estará conosco para sempre (Mateus 28.20).

O Espírito Santo nos impele novamente a buscar as Escrituras e a estudar a Tradição Herdada, não como estética, mas como conteúdo reflexivo da caminhada de 20 séculos feita pela Igreja de Cristo entre acertos e erros, sempre sob a proteção de Deus e rendida (nem sempre) à Direção do Espírito Santo que nos foi enviado pelo Pai e pelo Filho!

Quanto a mim, não sou “anglo-isso” ou “anglo-aquilo” ou ainda “anglo-aquilo-outro”. Estou voltando a ser, cada vez mais, um Episcopaliano sem adjetivos complementares, como eu me tornei desde quando optei pela Igreja Episcopal e nela fui acolhido com carinho pastoral e solidariedade. 
Amém!
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9 comentários:

  1. Concordo com teu artigo. Não sou formada em teologia, mas posso criticar o que vejo na minha igreja. Adoro ser anglicana!mas vejo que a igreja está sem personalidade, em cima do muro.Os próprios reverendos se autodenominam anglo-católicos. Ao visistar o templo, penso às vezes estar em uma igreja católica(nada contra, mas cada religião tem suas doutrinas), com uso de santos, cultos em homenagem a São Jorge.se nós falamos algo, criticando esse momento, somos conservadores! Sou mesmo. Só quero uma igreja independente e livre.

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    1. Nesse sentido, cara amiga anônima, também sou conservador! Conservador não é pejorativo. Conservar é manter a identidade! Os mal formados de nosso tempo confundem "conservador" com "reacionário."
      Por trás de muita coisa "inovadora" hoje em dia está um imenso espírito reacionário.

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  2. Palavras de indignação ecoando em nosso meio???Graças a Deus!!! Que outras vozes possam se manifestar. DEUS não tem parte com os omissos!!!
    Do jeito que as coisas estão, faço minhas as palavras do Revdo Caetano, "Eu não sou anglicano(a)!", e não se espantem se o próprio DEUS afirmar a mesma coisa.
    O texto "Eu não sou anglicano!", faz uma crítica coerente a situação da Igreja Anglicana, fazendo um paralelo com a igreja no passado, exortando a buscar as Escrituras e a estudar a Tradição Herdada, a Oração e a Comunhão com o Espírito Santo. Um texto muito bem produzido, parabéns!!!

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  3. Tenho saudade da Igreja Episcopal, da liturgia viva, da escola dominical, do hinário evangélico, dos corais, dos pastores que visitavam seu povo de casa em casa, pois sabiam que os átrios do Senhor se estendem até a morada de seu povo. Tenho saudade de Dom Olavo, o bispo que me ordenou, que fazia visita pastoral de ônibus e chegava nas paróquias com uma pequena mala de viagem na mão e um sorriso no rosto.

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    1. Pois é, meu mano. Parece que as coisas perderam objetivo, virou igreja pela igreja... Vamos resistir em oração e clamor!
      Há muita gente bem intencionada, mas sem bússola, vítimas do processo degenerativo da cultura que a gente assiste na pós-modernidade... Bjs.

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  4. Não seria essa situação descrita algo que se coloca no alvo daquele convite para voltarmos ao primeiro amor, que foi dirigida a uma das igrejas no texto de Apocalipse?? E, uma vez percebido o problema, um passo já foi dado: um clamor, uma palavra profética foi erguida. Certamente outros percebem o problema. Agora, caminhemos em direção a solução que, incrivelmente, está no Evangelho de Jesus Cristo.

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  5. Obrigado pelo seu comentário, Marcelo. Obviamente o Espírito Santo começa a mover a Igreja a voltar-se sobre si mesma para colocar-se diante de Deus como "o vaso na mão do oleiro"! Oremos por isso!
    Paz e Bem!

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  6. Realmente, como observa-se de um comentário do rev Calvani, o termo "anglicano" fala de algo inglês, enquanto o termo "episcopal" nos aproximaria mais de uma brasilidade. Aliás, todas as igrejas aqui "do Brasil" são estrangeiras. Todas! Quando o Brasil assumir sua identidade, ou quando o povo assumir como seu o Brasil, acontecerá um rompimento com esse "cristianismo" de aculturação, seja ele romano ou protestante.

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