27 de abr. de 2009

A Disciplina do Arcano

A palavra arcano significa sigilo, segredo. Para nós, cristãos ocidentais, frutos da Cristandade, do Protestantismo e da Modernidade, culturalmente secularizados, falar em Disciplina do Arcano pode parecer fora de contexto e contraditório com nossa formação iluminista, além de levantar suspeitas a partir de nossa ideologia liberal democrática de transparência e liberdade de informação e de expressão. Todavia, a Disciplina do Arcano foi fundamental para a sobrevivência da Igreja Antiga.

A exortação de Jesus, “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando, vos dilacerem” (Mateus 7.6), pode ter sido uma tradição já advinda dessa disciplina ou então tê-la inspirado. O fato é que, na Igreja dos Pais e dos Mártires, havia a regra de ocultar a doutrina cristã e as cerimonias litúrgicas aos que não fossem batizados. Uma cautela para preservar a fé e o kerigma de uma contaminação maior pelos cultos pagãos e pelas escolas filosóficas do mundo helenista, e também para preservar essa mesma fé de interpretações imediatistas dos catecúmenos, ainda mais impressionados pela experiência da conversão que pela reflexão e compreensão da doutrina, à qual eram introduzidos paulatinamente pelo processo catequético, de grande duração no tempo[1]. A Disciplina do Arcano também servia como segurança contra as perseguições do Império. Essa disciplina vigorou até o século VI, mesmo depois do “triunfo do cristianismo”, ou seja, do surgimento da Cristandade.

Mas há um aspecto importante nesse cuidado. Os primeiros pensadores cristãos, alguns contemporâneos dos Apóstolos, logo perceberam que o conteúdo do kerigma trazia em si algo inusitado e surpreendente, de bastante dificuldade de compreensão no mundo helenista. De certa forma, a Igreja dos Pais percebeu que falava sobre o indizível, os mistérios de Deus revelados em Jesus Cristo[2] , que pressupunham uma vivência especial, uma experiência com Deus.

Foi necessário desenvolver uma linguagem e uma semântica simbólica, geralmente apropriando-se de símbolos judáicos e pagãos, mudando seu sentido e significado, reinterpretando-os a partir do Evangelho, a Boa Nova revelada em Jesus Cristo[3]. Isso se reflete nos primórdios da liturgia cristã, a incorporação de elementos simbólicos e rituais do judaísmo e de algumas religiões pagãs de mistério, como por exemplo água, pão e vinho, unções, gestos, etc.

Entretanto, a liturgia cristã, desde a Igreja Antiga, tem uma consciência de si mesma que a diferencia dos ritos pagãos e da magia. Os ritos cristãos não provocam efeitos, mas são posteriores, como afirmação do que Deus já havia feito. Ou seja, o rito cristão não provoca a Graça, mas afirma a ação anterior de Deus, ao dar a Graça. O rito cristão não é mágico nem é um absoluto em si mesmo; pelo contrário, é sempre uma manifestação de gratidão e adoração ao Deus amoroso que atua na vida e no mundo[4].

Ao contrário das religiões de mistério, o rito cristão é a afirmação simbólica da doutrina e não a sua realização mágica. Por isso, a liturgia cristã não é uma representação ou a realização mágica de um mistério, mas é a afirmação do mistério revelado!

Isso teve um significado ímpar no mundo helenista, cujo conteúdo religioso era demarcado pelas religiões de mistério e esoterismos[5]. Como resultado da pregação, a conversão a Jesus Cristo era entendida (e sempre o deve ser) como uma experiência sensível, muito além do convencimento racional pelos argumentos do pregador, experiência essa que provoca no converso a metanóia, mudança de rumo existencial e mudança de visão de mundo. A conversão sempre foi compreendida, essencialmente, como obra do Espírito Santo, e não resultado da capacidade humana de provar as próprias ideias. Converter-se é muito mais que convencer-se! Tornar-se cristão era navegar contra a corrente religiosa do helenismo, portanto, uma atitude incompreensível pela mentalidade daquele tempo.

A Disciplina do Arcano impediu que a fé cristã se tornasse mais um esoterismo, mais uma religião de elementos mágicos, impossível de ser moeda de troca ou de personalismos[6], bem como de promover modificações doutrinárias e éticas para agradar as multidões e atrair novos prosélitos.

A Disciplina do Arcano impediu a Igreja de cair na tentação do crescimento rápido e desordenado! Faz falta hoje ...

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[1] Fontes antigas informam que havia igrejas onde a catequese durava de três a quatro anos; em outras, o tempo poderia ser menor, mas era sempre uma exigência antes de realizar-se o Batismo e assim inserir o catecúmeno na Comunidade de Fé.

[2] Ao contrário das antigas religiões de mistério, que cultuavam o que estava oculto e dependiam de ritos mágicos para entendê-lo, os cristãos interpretaram a palavra mysteron como o oculto presente que se revela. Usava-se essa palavra apenas para indicar aquilo que, estando oculto, fechado, encerrado, pode ser revelado, aberto, descerrado. Mysterion é, pois, aquilo que, estando oculto, é revelado, isto é, torna-se compreendido... mas não necessariamente explicado! Está aí, mas nem todos o enxergam, porque não podem ver através ou além do véu... Por isso falamos em “mistério” na liturgia e no ensino cristão. Mistério tem a ver com aquilo que Deus é, faz e revela. O mistério precisa do símbolo: não temos palavras para dizer o que é, mas somos capazes de perceber, sentir, experimentar, contemplar... ver além do véu! por isso, se celebra junto!

[3] Surge assim a iconografia cristã, que vai se tornar um campo da História da Arte.

[4] Para aprofundamento, veja-se meu artigo: Introdução à Liturgia Cristã. In: Inclusividade – Revista de Teologia do Centro de Estudos Anglicanos, Ano II nº. 6, Novembro 2003.

[5] Mutatis mutantis, essa é hoje uma das características da pós-modernidade: a busca pelo imediatismo mágico-religioso.

[6] Um exemplo disso, no Novo Testamento, mostrando a compreensão cristã sobre os dons de Deus, é a perícope onde o mago Simão tenta comprar de Pedro e João o poder da imposição das mãos (cf. Atos 8.14-25); trata-se de defender o as novas comunidades contra a interpretação mágica dos ritos cristãos e da errônea compreensão (gnóstica e esotérica) da Graça Divina.

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