Quando eu era criança minha mãe acompanhava pelo rádio uma novela diária, chamada “O Direito de Nascer”. Anos depois, a novela passou na TV, no tempo que não havia videoteipe, era tudo em estúdio. Havia falhas, caia cenário, era engraçado, apesar do enredo ser um drama. A TV brasileira estava engatinhando.
De fato, todos os seres vivos têm o direito a ficarem vivos. Se nasceram, o bom senso diz que merecem permanecer vivos, enquanto essa vida durar. O problema é a que vida se tem direito?
Hoje em dia fala-se muito em qualidade de vida, embora quase ninguém me explicou o que isso realmente significa. Afinal, o que é qualidade de vida? Como medir isso? É de fato possível uma vida de qualidade em uma sociedade impulsionada pela competição, exaltação do ego, individualismo exacerbado, exploração do trabalho, ganância, avareza, disputa pelo poder a qualquer preço, enfim, a qualidade de vida tão falada é realmente para todas as pessoas ou só para a minoria que controla tudo?
Ficar entubado em uma UTI, enquanto estiver no prazo permitido pelo plano de saúde ou pelo SUS, vítima de uma doença terminal e incurável, é qualidade de vida? Ou seria apenas uma receita garantida para o sistema de “saúde” (que vive às custas da doença) e em nome de uma medicina que se sente no dever de “preservar a vida”? Este é só um exemplo do problema ético que raros pensadores se animam a discutir, mas que a moralidade tacanha e hipócrita dita “cristã” dogmatiza e atribui ao seu “deus” o direito exclusivo de decidir sobre a duração da vida.
Há, portanto, uma questão teológica, além de ética, a ser analisada, questão essa que exige muita coragem para enfrentar, porque os “donos da verdade” andam à espreita caçando “bruxas” (tudo que coloca em risco seu dogmatismo).
Sou a favor do direito de decidir morrer, por uma pessoa consciente, madura e que percebe que a vida vai caminhar para um final de sofrimento, dor, solidão, abandono, e ainda por cima, ficar à mercê da ganância que move a maioria dos serviços de saúde (prefiro dizer de “serviços pela doença”). A possibilidade de ter a morte assistida, ou resolver por si mesmo, de forma rápida e segura (no sentido de não falhar), dar fim à uma vida que já não tem perspectiva de ser realmente vida que valha a pena viver.
Em algumas culturas antigas essa possibilidade existia. Por exemplo, no filme “A Balada de Narayama” do diretor Shohei Imamura, fala sobre a tradição em uma vila onde idosos são levados à montanha para morrer aos 70 anos, devido à trágica realidade econômica. Não era algo compulsório, e as famílias resistiam o mais possível a descartar seus idosos; O filme foca em uma senhora que, vendo a pobreza e a falta de alimentação para a família, insiste que se cumpra a tradição. De certa forma, ela está oferecendo sua vida em benefício do resto da família.
Tradições antigas do povo Inuíte (esquimós) falam de uma festiva celebração em que as pessoas idosas – a partir de determinada idade – se despedem da aldeia alegremente e partem rumo à escuridão ártica do Inverno recém iniciado. Há uma nova geração nascida e os recursos são limitados. Assim, uma geração se entrega para garantir a vida de outra.
Posso entender o choque que representa para nossa cultura afirmar que alguém tem o direito de encerrar sua vida; mas isso é apenas moralismo, que se justifica a partir das convenientes interpretações religiosas.
Ao mesmo tempo, a moralidade dita cristã se contradiz, por exemplo, quando exalta os mártires da fé que deram testemunho através da morte consentida. Sim, consentida! Porque foi uma decisão: permanecer vivo era o prêmio por negar o senhorio de Cristo e submeter-se às leis do Império; caso contrário, seria a morte. Muitos mártires optaram pela morte. Um tipo de suicídio. Claro que outros mártires não tiveram tal oportunidade de escolha. Foram mortos de forma imediata e cruel sem oportunidade de defesa, de escolha ou fuga.
Nossa cultura julga sem misericórdia o suicida. Algumas igrejas ditas cristãs negam os ritos de sepultamento – o suicida já é condenado a priori. Outros grupos religiosos afirmam que a pessoa não aceitou seu “karma”, seja lá o isso seja, e assim está condenada.
Também aceitamos e tratamos como heróis os militares que morrem na guerra. São obrigados a ir para a guerra, e se morrem, se tornam “heróis da pátria”.
Na raiz dessas ideias nada misericordiosas está a crença em um deus que impõe condições severas para que ame alguém: cumprir sua “santa” vontade, cumprir a suas regras e que o tal deus respeita o livre arbítrio da pessoa - o seu amor não é incondicional, precisa ser merecido. Arvora-se a esse deus o poder absoluto sobre a vida e a morte. Não creio nesse deus!
A proposta de permitir o direito de morrer direito ( a morte sem sofrimento, etc e tal, como disse acima) tem crescido nos últimos tempos e há sérias reflexões éticas (e teológicas) sobre em que condições esse direito poderia ser reconhecido.
Neste ensaio manifesto minhas primeiras reflexões sobre o assunto. Há muito a ser dito e muita reflexão ainda a ser feita. Rever velhos paradigmas, rever certas concepções da fé.
Por agora, é assim que tenho pensado nestes anos de velhice e diante da percepção de que a vida só será pior no futuro, dadas as condições de hoje! Até sei a maioria das objeções que virão... os chavões religiosos de sempre. Talvez nem venham! Afinal em nossa sociedade, os velhos não são considerados!
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