30 de mai. de 2025

Crônica do ano 75

 Hoje completo 75 anos de vida e nesta semana completei 40 anos de ordenação ao diaconato na Igreja Episcopal (cujo sobrenome é Anglicana do Brasil).

Não sei dizer se foram bem ou mal vividos, porque são conceitos vagos e sem significado real. Mas posso dizer que algumas coisas que vivi deixaram fortes impressões em mim e em outras pessoas, companheiros e companheiras de caminhada. Algumas positivas, o sentimento de que fiz bem-feito nas diversas áreas em que atuei profissionalmente, que cumpri meu dever como cidadão e como cristão; outras, negativas, com o arrependimento pelo mal que fiz – de forma consciente ou inconsciente – e mágoas que causei.

Muita gratidão, especialmente àquelas pessoas a quem magoei, mas me perdoaram!

O Magistério

O magistério e o estudo foram realmente minha razão de viver. Hoje reconheço que nasci para ser professor. Ensinando, aprendi muito, inclusive como não ensinar! Isso devo à educação escolar que recebi, graças ao esforço dos meus pais e aos excelentes professores e professoras que me serviram.

Sou fruto da educação de qualidade que existia no Brasil, inclusive nas escolas públicas, antes da ditadura militar estragar tudo e reformular completamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1970. 

Desde a infância, antes da ditadura, minha geração foi preparada para um mundo que, infelizmente, não veio a existir; na escola aprendíamos como aprender, e não apenas conhecer  coisas. Aprendíamos a pensar, a perguntar, a questionar; não éramos "treinados" para o conformismo nem para a obediência alienada... por isso, a ditadura teve de liquidar com a educação brasileira; era uma educação perigosa para os interesses das elites nacionais e mundiais (que, na verdade, promoveram e ainda promovem todos os golpes nazifascistas do mundo).

A maioria do pessoal da minha geração acabou se deixando modelar. Os "anos de chumbo", a tortura, a mídia controlada (e a grande mídia a serviço dos poderosos), desestimularam a inteligência e destruíram o caráter democrático; é mais fácil se conformar... e "cuidar da vida"! “Consumir e “ser feliz”!

Outros se permitiram fingir e manter sua inteligência funcionando disfarçadamente. Outros, bem poucos, assumiram com coragem a resistência - nem sempre de forma inteligente - e sofreram as consequências, quase todas trágicas.

Quarenta anos de Ordenação

Hoje tenho mais tempo de vida como clérigo que como leigo. A vocação surgiu a partir do encontro com Aquele Sujeito a quem chamam de Jesus de Nazaré, Filho de Deus, Deus Filho, etc, etc. Para mim, prefiro reconhecer n'Ele o Logos! "kai o logos sarx egeneto" ( “E a Palavra se fez carne”, cf. Evangelho de João 1.14a), sem nenhum outro conceito doutrinário e bizantino incluído.

Como Diácono, e depois Presbítero, sempre considerei muito importante o ensino da Bíblia, na verdade, os Estudos Bíblicos e sempre busquei  - nas pregações - a ênfase na exegese e na hermenêutica a partir do contexto da comunidade onde estive servindo. 

Isso aprendi no Seminário, um princípio bem dentro do "ethos" anglicano: ajudar a comunidade criar sua própria visão teológica a partir da sua história e da tradição herdada, em releitura permanente porque a realidade histórica é sempre mutável. Bem, não cabe aqui avançar nestas conceituações. Este blog está cheio de artigos sobre isso. 

Desajustado

De certa forma, sempre fui um "desajustado". Quando criança, preferia ler que brincar, embora eu tenha brincado muito, moleque de rua mesmo! Havia muitos livros em casa, e eu li quase tudo: Enciclopédia Barsa, Lello Universal em dois volumes, a coleção completa do Tesouro da Juventude, toda a obra infantil e a "para adultos" do Monteiro Lobato, as Obras completas do Humberto de Campos, romances  do Alexandre Dumas (pai e filho), e outros que não recordo o nome.

Na adolescência, por mim mesmo e pelas aulas de literatura,  descobri Herman Hesse, Aldous Huxley, Franz Kafka, Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Machado de Assis, Vinícius de Morais, George Orwell, Augusto dos Anjos, Cora Coralina, Adélia Prado, Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Drumont e muitos outros autores e autoras, não só literatura, mas também ciências naturais, ciências humanas, e até filosofia (olha só!) que hoje dizem não servir para nada; enfim, coisas que hoje não interessam a mais ninguém nesta sociedade propositalmente idiotizada, moldada para consumir e adoecer pensando ser feliz.

Me envolvi com teatro, com o Oficina, com Augusto Boal, Luiz Carlos Arutin, com o Arena, Ricardo Bandeira... cantei em corais, e fiz coisas que nem sei se ainda existem hoje.

No Seminário fui aluno de Jaci Maraschim, Rúben Alves, Glauco Soares de Lima, Frei Gorgulho, Dirson Glênio Vergara dos Santos, Natanael Duval da Silva, Rodolfo Garcia Nogueira, Sumio Takatsu; fizeram a minha cabeça pensar muito e perder os poucos parafusos do convencional bem ajustado que ainda existiam.

Os Professores e as Professoras, desde o Fundamental até a Universidade, nos desafiavam e nos incentivavam a ler, a pensar e questionar, a dialogar com o que líamos. Assim, a gente aprendia a aprender! 

Hoje não se aprende. Hoje não se lê. Hoje a idiotice impera graças à tecnologia sob controle absoluto dos ignóbeis que formam a elite mundial.

Se eu fui "desajustado" desde pequeno, continuei a ser assim até hoje. Falo o que não querem ouvir, escrevo para quem não lê, vejo o que não querem ver ou que seja visto... resultado: sou neurótico, me tornei pessimista, e minha fé não é lá aquela coisa "bonitinha" e romântica das pessoas religiosas, cujo "deus" as mantém idiotas e sempre culpadas – um deus sádico e cruel.

Os que ainda tentam pensar, são considerados “desajustados”, um perigo para as elites tacanhas do mundo.

Daqui para frente

Este não é um momento de nostalgia, arrependimentos ou sei lá mais o quê. O futuro será cada dia pior na sociedade e, em nível pessoal: saúde, solidão, distância e a sensação de continuar sendo o "estranho no ninho".

A esperança já não existe! A fé... cada vez mais distante... porque o que sobrou do cristianismo hoje em dia não presta, não consola, não motiva, virou religião burocrática que fez de "deus" um meritocrata. 

Porém, eu não posso negar a experiência que vivi no encontro com a Transcendência, por mais babaca que tenha sido essa experiência; e, por mais que eu possa entender racionalmente o que aconteceu, não posso negar o que "eu vi"!

Por isso, permaneço na Igreja, embora longe das comunidades de fé, mesmo sabendo que a Igreja que eu amei não existe mais. Perdeu-se na institucionalidade sem propósito, como todas as demais, mantendo os paradigmas equivocados que, desde o século III, liquidaram com o Movimento de Jesus. Todavia, ainda existem, espalhadas por ai, comunidades de fé na Igreja, e isso anima porque, de alguma forma, a Igreja de Cristo sobrevive apesar dos pesares.

No mais, devido a saúde e as condições financeiras, estou condenado a viver aqui, neste lugar, o resto do tempo de vida (que espero seja pouco), sem poder viajar, rever as pessoas que amo, não ter uma comunidade de fé onde eu possa participar (e congregar, porque assistir culto ou missa ou seja lá o que for, não é o mesmo que congregar).

Não estou feliz, e acho que Deus se mandou; não consigo mais orar... talvez eu tenha me mandado, de tanta decepção.

Gasto um dinheiro que seria mais útil para minha família; cada manhã é o mesmo suplício de "mais um dia de merda". A saúde acabando e daqui pra frente é só sofrimento e mais frustração. Envelhecer é uma merda! Proibir morte assistida é uma crueldade! Julgar um suicida a partir de uma moral esdrúxula é a maior contradição dos religiosos...

É hora de ir embora. Não tem por que continuar por aqui. Não há o que esperançar!

Hoje, por favor, não mande mensagem de “Feliz Aniversário”. Eu sei que, para muitos de vocês, é a sincera manifestação de carinho e amizade. Mas peço isso porque não estou feliz e não será um dia feliz, será como os outros dias: vazio, sem sentido e sem esperança; angustiante.

Apenas ore por mim e pela minha família!

Andradas (MG), 30 de maio de 2025

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7 comentários:

  1. Olha eu aqui, seu colega dos tempos da faculdade (fiz comentários em outra postagem sua). Amigo, está tudo bem com vc? sinto muita tristeza nesse texto. Tenha certeza que foram (são) 75 anos bem vividos e fiéis aos princípios que defendemos desde jovens. Sou 2 anos mais novo que você. Sou o que sou graças a você e os outros colegas do curso e da militância. Vou mandar e-mail (ainda é o seu nomegt do gmail?). Beijão.

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  2. Was zur Hölle ist das? Nada disso, caríssimo! Feliz aniversário, mesmo atrasado. E se não gostou, Scheiß drauf

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  3. Apesar de atrasado, recebe ai meu abração solidário! Ainda vamos comer muito filé à parmegiana, irmão gordo! (ouvi dizer que vc emagreceu! rsrsrs). No mais, hoje andei lendo os ultimos artigos neste blogue. Como vc costumava dizer, vamo que vamo, mano.
    Edson

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    1. Você se apresenta anônimo, mas o filé te entregou. Como vão as coisas ai no Rio? abração!

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