Jesus foi (é) especialista em romper paradigmas. Por exemplo, em Marcos 1.40-45, ele toca em um leproso e o cura. Todo mundo dá muita importância à cura, mas o fato mais importante do texto é que Jesus tocou o leproso! Segundo a Lei de Moisés, isso fazia de Jesus um impuro, tanto quanto o leproso. Mesmo assim, Jesus desobedece a norma, rompe o paradigma sobre impureza e coloca o homem, antes excluído, apto para viver em sociedade.
Eu gosto muito de ler, estudar e refletir o Evangelho segundo São João. Acho que é um dos livros mais fortes da Bíblia, e muito mal compreendido pela Igreja… chegou a ser suspeito de heresia gnóstica antes de ser aceito pela Igreja Antiga! Não é para menos! João apresenta um Jesus que rompe paradigmas o tempo todo, algumas vezes de forma cínica, encarando de frente os “donos da verdade”, escribas, fariseus, saduceus, autoridades religiosas e outros “especialistas em Deus” naquele tempo.
Uma das minhas perícopes preferidas é João 5.1-18, com o péssimo e errado título de “cura de um paralítico” dado pelos antigos editores da Bíblia em língua portuguesa:
Depois disso, houve uma festa dos judeus, e Jesus foi até Jerusalém. Ali existe um tanque que tem cinco entradas e que fica perto do Portão das Ovelhas. Em hebraico esse tanque se chama “Betezata”. Perto das entradas estavam deitados muitos doentes: cegos, aleijados e paralíticos. [Esperavam o movimento da água, porque de vez em quando um anjo do Senhor descia e agitava a água. O primeiro doente que entrava no tanque depois disso sarava de qualquer doença.] Entre eles havia um homem que era doente fazia trinta e oito anos. Jesus viu o homem deitado e, sabendo que fazia todo esse tempo que ele era doente, perguntou: — Você quer ficar curado? Ele respondeu: — Senhor, eu não tenho ninguém para me pôr no tanque quando a água se mexe. Cada vez que eu tento entrar, outro doente entra antes de mim. Então Jesus disse: — Levante-se, pegue a sua cama e ande! No mesmo instante, o homem ficou curado, pegou a cama e começou a andar. Isso aconteceu no sábado. Por isso os líderes judeus disseram a ele: — Hoje é sábado, e a nossa Lei não permite que você carregue a sua cama neste dia. Ele respondeu: — O homem que me curou me disse: “Pegue a sua cama e ande.” Eles perguntaram: — Quem é o homem que mandou você fazer isso? Mas ele não sabia quem tinha sido, pois Jesus havia ido embora por causa da multidão que estava ali. Mais tarde Jesus encontrou o homem no pátio do Templo e disse a ele: — Escute! Você agora está curado. Não peque mais, para que não aconteça com você uma coisa ainda pior. O homem saiu dali e foi dizer aos líderes judeus que quem o havia curado tinha sido Jesus. Então eles começaram a perseguir Jesus porque ele havia feito essa cura no sábado. Então Jesus disse a eles: — O meu Pai trabalha até agora, e eu também trabalho. E, porque ele disse isso, os líderes judeus ficaram ainda com mais vontade de matá-lo. Pois, além de não obedecer à lei do sábado, ele afirmava que Deus era o seu próprio Pai, fazendo-se assim igual a Deus. (João 5.1-18 – Nova Tradução na Linguagem de Hoje / Sociedade Bíblica do Brasil)
Vejamos algumas coisas no texto: diz ai que o sujeito está DOENTE há 38 anos. Não diz que ele é paralítico. Uma parte do texto é uma glosa (está entre colchetes, significando que não há unanimidade nos manuscritos gregos originais sobre o trecho). Mas essa glosa explica que há uma crença popular antiga sobre o tanque em Betesda (a NTLH chama de “Betezata” – purismo dos biblistas?): um anjo vinha agitar as águas e o primeiro que entrasse no tanque era curado. Que coisa mais maluca, você não acha? e profundamente injusta! Esse negócio de Deus fazer uns milagrezinhos para alguns e deixar uma multidão se lascando o tempo todo é algo muito pouco coerente com o Deus amoroso que Jesus revelou! Os que se locupletam com os lucros dos milagres vão dizer sempre que não acontece o milagre se o sujeito não tiver Fé (como se Deus necessitasse de algo dependente do ser humano, como ter Fé – que aliás, é dom de Deus! Então Deus seria um safado! não dá o dom da Fé e por isso não faz o milagre! um gozador cruel!).
Então está lá o sujeito, enfermo e paralisado por uma crendice… totalmente dependente e escravo de um costume religioso sem sentido algum! Jesus chega até ele e, com uma tremenda cara de pau, simplesmente manda o sujeito ir embora para ser curado!!!! Ele não ora, não impõe as mãos, não passa cuspe no sujeito, não molha com água milagrosa! Jesus faz absolutamente nada! apenas manda o sujeito pegar suas coisas e dar o fora! A coisa é tão surpreendente que o sujeito vai embora e nem mesmo sabe quem é aquele que o libertou!
Isso causa um tremendo furor entre as autoridades e os ambulantes que, com certeza, estavam por ali explorando aqueles infelizes… como em qualquer santuário milagreiro, sempre tem o pessoal do comércio de coisas sagradas e vendedores de empadinha, coxinha e pastel… Ora bolas! um sujeito “doente” simplesmente se levanta e vai embora, sai curado sem passar pelo ritual do banho!!! que risco para os negócios!!! Claro, eles têm de arrumar uma forma de atacar quem teve tal ideia! e como sempre, buscam uma razão moralista para acusar quem rompeu com o costume: invocam a lei do sábado! e fazem o maior tré-lé-lé com isso.
O sujeito “curado”, por sua vez, fiel às leis religiosas, vai para o templo, com certeza para se apresentar ao sacerdote e dar sua generosa oferta pela cura, em ação de graças! E lá acaba se encontrando de novo com Jesus, que lhe dá uma bronca: — Escute! Você agora está curado. Não peque mais, para que não aconteça com você uma coisa ainda pior. Ou seja! o que você está fazendo aqui??? insistindo em manter o costume sem sentido???
Mas então as autoridades descobrem que Jesus foi o responsável por aquele desatino que ameaçava o próspero negócio milagreiro de Betesda. E começa o ataque moralista sobre o sábado…
Essa é uma característica da primeira parte do Evangelho de João, do capítulo 2 até o 12: a permanente querela das autoridades religiosas com Jesus em relação aos costumes e regrinhas da religião, os bons costumes que fazem tudo funcionar bem… os paradigmas, que não são a Tradição, mas a forma de interpretar a Tradição.
(Perdoem-me os especialistas em exegese e hermenêutica; não sou desse time, mas como sou Protestante, pratico o livre exame das Escrituras e como uma parte da Igreja de Cristo me ordenou Presbítero, sou autorizado a não só examinar, mas também interpretar e ensinar. Assim, não estou preocupado se minha interpretação é academicamente perfeita, mas eu a considero pastoralmente muito boa! – nada modesto, né?)
Como Israel no tempo de Jesus, a Igreja é herdeira de uma Tradição muito antiga. Nesses 2000 anos de história, a Igreja foi interpretando e reinterpretando a Tradição, para responder ao tempo do presente. Mas muitas coisas acabaram grudando na Tradição, se tornaram paradigmas, certezas absolutas, e se confundiram com a Tradição, a cristalizaram, a emparedaram. O que era resultado da reflexão à luz da Fé, em determinado momento, acabou se tornando um valor perene, não questionável, engessando a reflexão e a percepção da Palavra de Deus em tempos posteriores.
Eu creio firmemente que a Palavra de Deus fala às pessoas de cada geração, de cada tempo e apresenta o Caminho de Deus para esse tempo. Temos hoje na Igreja costumes, normas, padrões, que são discrepantes e nada dizem para o homem contemporâneo. Muito do que falamos sobre doutrina, missão, evangelização, liturgia, devoção, é meramente paradigma, algo que em certo momento foi útil, mas já não é mais. Nossa própria visão de Igreja – a eclesiologia – está engessada na institucionalização brutal que acabou tomando conta de nossa maneira de funcionar: nossas formas de governo, nossos cânones, as centenas de órgãos burocráticos e “comissões de coisa alguma” que são criadas para qualquer decisão a ser tomada… O eclesial da Igreja acabou sendo minimizado pela enormidade eclesiástica!
As pessoas hoje entendem a Igreja (e as Igrejas) como instituição! E vivemos um tempo em que as Instituições perderam a confiabilidade. Quase não se percebe mais a “Ecclesia Tou Theou”, a Comunidade de Deus (literalmente “Assembleia de Deus”!!!).
Aquilo que deveria ser a infra-estrutura para a Missão (Martiria), para o Serviço (Diaconia), para a Comunhão (Koinonia) acabou se tornando superestrutura centrada em si mesma, que cuida apenas do próprio umbigo.
Não seria hora da gente ter a coragem de reavaliar tudo e quebrar os paradigmas que nos amarram e nos fazem perder um tempo enorme de nossas vidas inutilmente? recuperar a Tradição, polir aquilo que verdadeiramente é nossa herança, recebida de nossos ancestrais, e tornar a Igreja uma COMUNIDADE DE FÉ realmente relevante e atuante no testemunho do Evangelho???
Precisamos de mais estudo e menos burocracia! precisamos de mais oração consequente que rezação para cumprir preceito! estudar a Tradição, separar joio do trigo e, então, pegar nossa cama e sair caminhando, libertados dos paradigmas que nos paralisam. (“Quem sabe a gente cria uma comissão para estudar o assunto?” ARGH! vou vomitar!)
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Muito boa provocação meu irmão. Haja inspiração. Que Deus continue te iluminando, ou seja, te avivando a intuição!
ResponderExcluirParabéns pelo texto, Caetano. Excelente!!!
ResponderExcluirMuito interessante, Reverendo. E esse famoso milagre nos mostra que as maravilhas de Jesus são mais simples e profundas do que imaginamos. Como falado em estudo bíblico, precisamos ouvir mais que Jesus tem a nos dizer. E assim agirmos de modo tão inspirado que o resultado pareça um grande milagre!
ResponderExcluirMuito interessante essa análise do texto joanino. Amplia a visão da narrativa e a coloca como referência no contexto de João. Impressionante como João é mal interpretado, de forma barata e falsamente mística, ocultando o motivo real e o contexto das narrativas. Admiro sua coragem em colocar os pingos nos is, resgatando uma percepção que sempre foi anulada pelas instituições religiosas, que preferem promover superstições ao invés de ensinar às pessoas a verdade do Evangelho.
ResponderExcluirUm sacerdote católico romano, seu admirador.
´Muito obrigado, irmão e companheiro de Ministério.
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