5 de mai. de 2011

Shirota – uma bênção de Deus

Conheci o Haroldo Shirota quando fui missionário leigo em Dourados (MS), em 1979. Haroldo morava em uma agrovila da fazenda Itamarati, em Ponta Porã, onde havia um ponto de pregação da Igreja. Ele já era membro da Igreja quando o conheci; o resto de sua família – a esposa e as filhas - era budista. Episcopais mesmo ali na agrovila eram apenas o Haroldo e um outro senhor, também japonês, o Kaneta, cujo pai (budista) era o gerente do Hotel onde eu residia em Dourados.
O Shirota e o Kaneta é que organizavam as coisas para a celebração da Santa Ceia na capelinha da agrovila, quando o então Rev. Almir (na época Pároco de Londrina, Norte do Paraná e Mato Grosso do Sul – coisas da IEAB!) por lá aparecia a cada dois meses para a celebração. Quando fui morar em Dourados, eu visitava a missão a cada quinze dias, uma viagem complicada que implicava em ônibus e – pasmem! – trem!
Assim convivi com o Shirota aquele ano de 1979. Toda semana ele aparecia em Dourados, guiando um veículo da Itamarati, trazendo o pessoal que vinha ao médico em Dourados, especialmente quem precisava de cuidado hospitalar e era eu com o Shirota que cuidávamos dessas coisas junto ao Hospital Evangélico e o Municipal de Dourados.  Shirota fazia isso voluntariamente, nas suas horas de folga!!! Era um Diácono sem ser ordenado; e eu ficava impressionado com o carinho e a atenção que ele tinha para com as pessoas doentes.
Deixei Dourados no final daquele ano, fui para Londrina; o Rev. Almir continuou visitando a região, até ser transferido para Horizontina e depois Erexim. Passaram- se vários anos, eu fui Ordenado Diácono, depois Presbítero, servia Igreja em Araranguá e região (SC) por um ano e fui chamado para ser Reitor do Seminário Teológico em Porto Alegre e pároco da Igreja da Ascensão.
Uns meses depois que eu estava em Porto Alegre, em 1987, recebi um telefonema do Rev. Almir, dizendo que o Shirota precisava de muita ajuda.
Aconteceu o seguinte. O Shirota deixou o trabalho na Itamarati, foi para Mato Grosso, ou Rondônia, em uma cidade dessas remotas, cujo nome não me recordo, e lá se envolveu com fazer pastéis ou algo do gênero. Então, estando o tacho com óleo fervente no fogão, o óleo incendiou. Uma criança estava perto do tacho, o Shirota correu e pegou o tacho para abafar o fogo, mas por alguma razão, escorregou e o óleo fervente caiu sobre ele (mais tarde, me contando, ele dizia “Graças a Deus salvei a criancinha!”). Resultado, 75% do corpo queimado em terceiro grau. Literalmente, o Shirota foi fritado.
Levado, em meio a muita dor, para Cuiabá de avião (após uma viagem por terra que imagino como foi feita… sinto arrepios ao pensar nisso) ele precisava de tratamento mais adequado, teria de fazer implantes de pele, etc. Uma possibilidade seria trazê-lo para Porto Alegre, mas alguém tinha de se responsabilizar por ele, conseguir lugar para morar, etc. Sem pensar duas vezes, assumi essa responsabilidade com a Ivone, minha esposa na época (uma mulher muito especial), e com a comunidade do Seminário, que se mostrou muito solidária. Uma das seminaristas (a hoje Revª. Taís Feldens) era enfermeira profissional e se prontificou a prestar os serviços profissionais que fossem necessários.
Preparei a comunidade do Seminário e da Paróquia para receber o Haroldo Shirota, que – segundo o Rev. Almir – não tinha lá uma aparência agradável.  Fui buscar o Shirota no Aeroporto Salgado Filho e fiquei realmente triste ao ver a figura humana que desceu a escada do avião amparado por um tripulante: uma verdadeira múmia, enfaixado da cabeça à cintura, e pelas pernas que apareciam abaixo da bainha da bermuda.
O motorista do taxi chegou a ficar com olhos lacrimejados quando viu o passageiro que estava comigo. Na chegada ao Seminário, ele entrou em minha casa discretamente, um tanto quanto envergonhado, porque sabia que logo seria apresentado à comunidade do Seminário.
E de fato, a comunidade do Seminário o recebeu no jardim de minha casa antes do almoço; vieram buscar o Haroldo para almoçar no refeitório com a comunidade. Houve um choque inicial, embora o pessoal tenha tido o cuidado grande de sorrir e disfarçar o estranhamento. Mas quem quebrou mesmo o gelo foi o Cainã, um menino de 5 anos, filho do então seminarista Elton e da Maria (que dava uma força para gente na cozinha). O Cainã olhou para o Haroldo, e disse algo assim: “Olá! Você é o Haroldo, né? eu sou o Cainã e vou ser seu amigo!”  e pegou o Shirota pela mão e o levou até o refeitório, seguido por todos nós da comunidade.
A presença do Haroldo em Porto Alegre ficou na memória de todos que com ele conviveram. Menos de uma semana depois ele já estava fazendo os primeiros implantes de pele e quando teve alta, resolveu assumir um ministério muito especial: quando lia no jornal que houve um acidente com queimados, ele ia visitar essas pessoas; semanalmente ele visitava queimados no hospital especializado em Porto Alegre. Ele me disse que queria levar esperança e conforto para essas pessoas, incentivá-las para o tratamento, para que – como ele – pudessem continuar a vida.
Haroldo fez muitos amigos em Porto Alegre, na paróquia da Ascensão, na Catedral da SS. Trindade e na comunidade do Seminário. Haroldo cuidava do jardim do Seminário e estava sempre pronto para ajudar em qualquer coisa voluntariamente. Ele se mantinha com uma pequena pensão do INSS e se preocupava em mandar dinheiro para sua família.
Quando voltei para o ministério paroquial em Araranguá, ele foi junto, continuando a morar em minha casa. Também lá o Haroldo conquistou a amizade e o carinho do pessoal e dava seu testemunho de como Deus estava sendo bom com ele e como a Igreja Episcopal o acolheu com carinho e cuidado. Nunca, mas nunca mesmo, vi o Haroldo Shirota lamentar o que aconteceu.
Infelizmente, sua família o deixou de lado logo depois que ele foi para Porto Alegre; algo a ver com “Karma ruim”… Assim, a família do Haroldo passou a ser os amigos que conquistou na Igreja. Lembro de sua tristeza quando soube que uma das filhas iria casar e ele não poderia ser convidado… Mas oramos juntos pela filha durante toda a semana do casamento – por iniciativa dele!
A pele do Haroldo nunca se recuperou; formou queloides, ele foi obrigado a viver com uma espécie de roupa especial elástica; as correções cirúrgicas em seu rosto não ficaram perfeitas, e ele sentia muita coceira porque sua pele não transpirava. Mas continuava sorrindo, fazendo a leitura das lições na Igreja, e ajudando todo mundo que ele pudesse; todos os dias, em algum momento, estava no templo em oração. Mensalmente ia a Porto Alegre, visitar o Hospital de Queimados para consolar e dar esperança.
Resolveu ir trabalhar no Japão, e foi. De lá nos telefonava às vezes pela meia-noite, quando estava no intervalo de almoço (era meio dia lá); e quando vinha ao Brasil, trazia um monte de presentes e visitava todo mundo em Porto Alegre, Araranguá e em Brasília e depois Londrina, onde eu morei; nessa ocasião, o Rev. Almir já havia sido eleito Bispo de Brasília e estava em pleno episcopado.
Soube depois que o Haroldo trabalhou por dois ou três períodos no Japão, e hoje está em Mato Grosso.  Perdi o contato com ele, mas acredito que ele continua o mesmo sujeito carinhoso, sorridente e amigo leal, dando seu testemunho sobre o amor de Deus para com ele…
Há dias venho pensando nele e até sonhado com ele. Não sei porquê, mas eu senti que precisava escrever sobre ele, até para tentar saber se alguém o localiza para mim.
Devo muito ao Haroldo Shirota. Em momentos de crise, ele era o abraço amigo, o ombro companheiro… e conselheiro! A dor fez dele um mestre da Esperança e da Consolação.
Sou grato a Deus por ter conhecido e tido a grande honra de ter convivido com o Haroldo Shirota, um santo de Deus; foi ele quem me ensinou que, muitas vezes, Deus faz da desgraça, uma graça. Haroldo – como Abraão – foi (tem sido) uma Bênção na minha vida e na de muita gente!
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