30 de jul. de 2012

A Coisa

O despertador tocou às 6h00, como todos os dias; João levantou-se abriu a veneziana e contemplou a rua, aspirando o ar fresco. Estranhou o pouco movimento, mas deu-se conta que era sábado; já os bem-te-vis e os pardais faziam a costumeira arruaça matinal. “Eles não têm sábado, nem domingo, eles não estão presos às convenções do tempo”, e esse pensamento fez surgir um sorriso no rosto de João. Tomou banho, lavou a dentadura, fez gargarejo com o Listerine, vestiu-se, desceu até a cozinha, bebeu os dois copos de água que o médico recomendou, e saiu para comprar o pão na padaria da praça, ali perto, e pegar o jornal na banca do Reinaldo, para depois fazer o café e ver o que o editor do jornal queria que ele ficasse sabendo. Tudo como sempre fazia desde que se aposentou.


Ao sair para o pequeno jardim do sobrado, ele a viu! Estava ali, no lado esquerdo do canteiro de copos-de-leite. “Estranho”, pensou João, “que é essa Coisa ai?” La estava aquela Coisa, e João tinha certeza que ontem não estava lá.  Mas agora estava lá, solene, na terra, entre os copos-de-leite, imperiosamente ela mesma, aquela Coisa. João se aproximou para ver a Coisa mais de perto: “Que Coisa é essa?”, e ficou olhando interessado.

Nisso, passou o Garrido, com seu sorriso bonachão dando o solene “Buenos Dias” com seu sotaque portenho, e então percebeu o João entretido com a Coisa. “Que Cosa es esta?” perguntou. “Não sei, essa Coisa apareceu aqui assim, sei lá vinda de onde!”  Garrido entrou no jardim e pôs-se também a olhar a Coisa. E estavam os dois olhando a Coisa quando passou dona Severina, nordestina arretada, neta de cangaceiro  e evangélica, que ao ver a Coisa logo foi dizendo: “Essa Coisa ai não é coisa de Deus!"” e entrou para olhar a Coisa também ao mesmo tempo que repreendia a Coisa.

Logo várias pessoas da vizinhança estavam ali, olhando a Coisa, pois todos que passavam se interessavam e vinham perguntar que Coisa era aquela. E todos diziam alguma coisa sobre a Coisa. Várias hipóteses surgiram para explicar a Coisa, mas ninguém conseguia dizer que coisa a Coisa era.

Vicente, o filósofo da rua, disse que já tinha visto muita coisa, mas nunca tinha visto uma coisa como aquela Coisa. Gilberto, que estudou dois anos de engenharia na juventude, disse que talvez a Coisa tivesse relação com um tal de Bóson de Higgs (“é com agá, mas a gente fala como se fosse erre”, salientou) que alguém tinha visto na Suíça, mas foi contestado pelo Vicente dizendo que o Bóson de Higgs era outra coisa e não aquela Coisa.  “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa e nada é a mesma coisa. Isso está me parecendo uma coisa estranha”, concluiu Vicente.

Dona Severina, continuava dizendo que a Coisa não era coisa de Deus, e já estava reunindo um grupo para orar pedindo a Deus que mandasse um profeta explicar o que era aquela Coisa, enquanto Gilberto, expressando seu ateísmo materialista, reclamava que a dona Severina não dizia coisa com coisa, e que aquela Coisa não tinha nada a ver com religião, uma coisa que ele não gosta.

Verinha, balzaquiana solteira, defensora dos direitos humanos, da ecologia e representante da rua na Associação do Bairro, chegou dizendo que a Coisa tinha o direito de estar lá e que ela não admitiria que alguém tentasse pegar na Coisa, e aproveitou para distribuir os panfletos sobre a próxima assembleia do bairro, que deveria tratar de várias coisas.

O fato é que todos falavam alguma coisa sobre a Coisa, e muita coisa se dizia sobre a Coisa, mas ninguém dizia realmente qualquer coisa que explicasse a Coisa. Alguém sugeriu chamar a Polícia ou os Bombeiros, mas outrem disse que isso não é coisa de Polícia, e que talvez fosse melhor deixar a Coisa como estava porque as coisas vão e vem, a vida é uma coisa assim mesmo. Verinha retrocou dizendo que não podiam ser conformistas e deviam lutar pela Coisa, porque era a coisa mais certa a fazer. “A Coisa é nossa, está na nossa rua e nós temos de cuidar da Coisa contra a manipulação política da Coisa! e só de pensar na Coisa, me dá aquela coisa, sabe, de me arrepiar toda!”

Foi então que chegou o Toninho, moleque da rua que fazia pequenos serviços para a vizinhança em troca de umas moedas para seu cofrinho de lata. Sem dar importância ao grupo que estava discutindo a Coisa, foi logo dizendo:
_“Ô seu João, ontem quando vim limpar seu jardim esqueci uma coisa… ah! está aqui!”, e pegou a Coisa.  Todo mundo ficou admirado!

Toninho já ia saindo quando o Vicente resolveu fazer a pergunta que todos queriam:
“Ô garoto! Essa Coisa é sua? que Coisa é essa?”
“Ora, é uma Coisa minha! só isso!”, e Toninho saiu correndo feliz por ter achado sua Coisa.

Pouco depois todos se deram conta que a Coisa não estava mais lá; afinal era Coisa do Toninho e ninguém tinha nada a ver com a coisa. Então, cada um foi cuidar das suas próprias coisas.

“Que Coisa!”, exclamou João, e foi direto à padaria.
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21 de jul. de 2012

Do Poder, do Episcopado e outros babados.

s_pedroepaulo Instituições tem a cara dos seus dirigentes. O caráter humano é essencial na identidade de cada instituição. O caráter humano é muito influenciado pelo poder, essa “coisa mágica” que permite algumas pessoas exercerem autoridade sobre as outras dentro de um espaço institucional, seja a família, seja o Estado, seja uma ONG, seja uma comunidade de fé ou uma denominação religiosa.

Quando se trata de uma instituição religiosa, a coisa se complica um pouco mais, porque há tendência das pessoas sacralizarem a instituição, ou seja, pensar a instituição como algo divino, de tal forma que seus dirigentes são entendidos como “escolhidos pela Divindade”, e portanto sua autoridade e seu poder emana do próprio Divino.
[ Uma piadinha teológica: quem quer que já tenha participado de um processo eleitoral para a escolha de dirigentes eclesiásticos, de qualquer denominação cristã, sabe os conchavos e acordos que são feitos entre os diferentes grupos de interesses que naturalmente existem em qualquer agrupamento humano. Como cada grupo se entende iluminado pela Divindade, podemos imaginar a Divindade em contradição consigo mesma! ou então, morrendo de rir com a petulância de cada grupo! ]
Houve tempos e sociedades (e ainda hoje há algumas sociedades assim) em que o Estado se confunde com o Divino; chamamos isso de Teocracia. Há centenas de exemplos históricos demonstrando que as teocracias foram um fracasso e não acabaram bem… e as populações à elas submetidas sempre viveram mal. No mundo ocidental, após a queda do Império Romano do Ocidente, o poder ficou pendente entre a nobreza que sobrou do Império, os chefes das clãs “bárbaras” e a Igreja Cristã.

Já naquele tempo, enquanto a Igreja do Oriente era etnicamente e culturalmente dividida, a Igreja do Ocidente se identificou como Instituição sólida e “católica”, ou seja, a mesma “única igreja” e idêntica em todo o “mundo”, assumindo o poder unificador antes exercido pelo Império Romano; aliás, até a cúpula da Igreja ficou localizada na antiga Cidade Imperial. Assim, as negociações pelo controle do poder acabaram gerando uma relação de mútua dependência entre o que hoje entendemos como Estado (forçando a barra, porque pensar em Estado na época medieval é um tanto quanto absurdo) e o poder “sagrado” da Igreja. Bispos coroavam Reis e as complexas relações de senhorio e vassalagem criavam um certo equilíbrio, não muito sólido, mas administrável. Com o advento da Modernidade, o poder do Estado foi se tornando independente do poder sobre o Sagrado, embora as relações entre ambos sempre fossem cordiais (com raras e históricas exceções) promovendo fluxo de privilégios de um para o outro em mão dupla.

A Reforma do século XVI e as posteriores reformas acontecidas a partir dai na Igreja do Ocidente, não mudaram esse quadro. Porque tal quadro é inerente às instituições… a disputa de poder interno é parte da natureza das instituições – qualquer instituição, porque são constituídas por pessoas e todas as pessoas estão sob a dinâmica de Gênesis 3: a tentação de ser igual a Deus e perder o Paraíso...
Como instituição em si mesma, a Igreja não tem sentido algum, nem tem finalidade alguma na realidade humana. Viveríamos muito bem sem a Igreja enquanto pensada como instituição. Até porque muita gente vive bem e feliz sem estar ligada à qualquer coisa que seja religião institucional. Mas há uma natureza transcendente na Igreja que vai além de sua institucionalidade: é sua compreensão enquanto parte do Povo de Deus (o Qual tem muitos nomes e muitos povos).

A reflexão que se segue é focada exclusivamente na Igreja onde estou. Perdoem-me os leitores de outras denominações e confissões, mas talvez tal reflexão possa ajudar, com as devidas adequações, uma reflexão em outros contextos.

A Igreja onde vivencio comunitariamente a minha fé e exerço meu ministério é uma Igreja Episcopal (até no nome!). Isso significa que a Autoridade na Igreja é exercida pelo Episcopado, porém, entre nós, o Episcopado não é um absoluto em si mesmo (embora hajam bispos, clérigos e leigos pensando que seja!). Bispos são eleitos pela Igreja, clero e povo (já fica claro que o clero não é povo! mas chamado e separado para ser servo do povo!), não são nomeados por uma autoridade central (no caso da Igreja da Inglaterra, é um pouco diferente, mas isso é lá um problema deles, eu não tenho nada com isso e nem me afeta diretamente) e seu poder é exercido dentro do conceito de Autoridade Dispersa e Compartilhada, que é um dos nossos princípios basilares de identidade e nos caracteriza como uma Igreja de Tradição Católica e Reformada . Qualquer presbítero ou presbítera poderá ser levado ao Episcopado  pelo voto da Igreja conforme normatizado pelos Cânones Gerais [ inclusive eu, embora haja gente que treme na base ao imaginar isso! (risos irônicos) ].

Atribui-se ao Apóstolo Paulo a afirmação que “quem aspira ao Episcopado, boa coisa aspira” (1ª Timóteo 3.1), embora na Almeida Revista e Atualizada conste “Fiel é a palavra: se alguém aspira ao episcopado, excelente obra almeja”  e na Nova Versão Internacional o texto diz “Esta afirmação é digna de confiança: se alguém deseja ser bispo, deseja uma nobre função”. Importante notar que a Palavra se refere à obra ou à função! O Apóstolo vincula o conceito de episcopado ao conceito de serviço (Diaconia!).

Eu sempre digo aos seminaristas pretendentes ao Ministério Ordenado, especialmente ao Presbiterado, que é dever nosso como presbíteros ter muita clareza sobre o fato do Episcopado ser um horizonte possível no ministério de cada um. Cada um de nós deve ter uma posição bem clara sobre a possibilidade de ser chamado ao Episcopado: em primeiro lugar, se aceitaria isso para sua vida; em segundo lugar, em que circunstâncias de sua vida aceitaria isso (em que momento de sua vida), em terceiro lugar, quais os critérios próprios para aceitar a indicação.

Caso contrário, o Episcopado pode surgir como uma “evolução natural da carreira eclesiástica”, como é o generalato para a carreira militar. Acontece que o Episcopado não é isso, Bispos não são Generais mas são Pais ou Mães em Deus (ou deveriam ser e comportar-se como), nem recebem o Episcopado pelo mérito de uma carreira bem sucedida e pelos “bons serviços prestados à Igreja” (quando alguém é eleito Bispo nessas condições, quase sempre dá em merda!): Episcopado não é coroamento de carreira, porque o Ministério Ordenado não é uma carreira profissional, pelo menos eu o entendo assim. Evidentemente que, ao olharmos a Igreja em seu aspecto institucional, há uma carreira eclesiástica, mas há o caráter transcendental que define o Ministério como chamado e  envio para o Serviço em nome do Senhor Jesus Cristo, em fiel obediência a Deus e aberto à ação do Espírito Santo.

De fato, eu comecei a pensar nisso ainda no tempo de seminarista, até mesmo porque alguns dos meus professores estimulavam que todos nós fizéssemos essa reflexão. Assim, desde muito cedo eu tenho bem claro o horizonte do Episcopado e tenho bem definidas as respostas às questões enunciadas acima.
Além disso, entendo o Episcopado como um serviço e portanto não tenho um projeto pessoal de Episcopado, porque o projeto que interessa é o projeto da Igreja, da Diocese. O erro da Igreja Episcopal no Brasil (e em outras partes do mundo) é que se elege um Bispo e não um Projeto para o qual se busca o líder adequado para sua execução por toda a Igreja Diocesana. Ou seja, elege-se o Bispo e dane-se ele! Tudo passa a depender dele e - ou se concorda e apoia ou se discorda e faz-se oposição velada. 

 Eu entendo que o Episcopado deve ser exercido de forma a contemplar um plano diocesano de ação e não um projeto pessoal.  Assim, a minha grande condição para aceitar concorrer ao Episcopado seria que me fosse oferecido e mostrado um Plano Diocesano, que não são metas simplesmente, mas um Projeto que tenha claro de onde se parte e de onde se quer chegar, e as alternativas de caminho, e eu de fato avaliaria se me sinto capaz – e se sou a pessoa adequada – para exercer tal responsabilidade de liderança. Como a Igreja é recheada pela cultura política brasileira, não há projeto, mas apenas o desejo de ter alguém que carregue o piano e favoreça uns e outros…  Não é o Bispo que deve ter um projeto, mas a Igreja Diocesana. E, de preferencia, que seja construído antes do Bispo… e que depois da escolha do Bispo o projeto seja executado pelo conjunto da Igreja e aferido, avaliado e reformulado sempre com a participação de toda a Igreja.

Acho que o Bispo não deve ser o gerente da Igreja; deveria deixar isso para especialistas que estão na Igreja; o Bispo deve ser Pai (Mãe) e Pastor do Clero e com o Clero, Pai (Mãe) e Pastor do Povo. Todo clero é incardinado em seu Bispo (termo técnico que designa a vinculação ao Bispo) e por isso, o Bispo deve estar incardinado em seu Clero e Povo (estar no coração). Mas é preciso que a Igreja amadureça muito ainda para entender e viver isso realmente, e – pela minha idade – não verei isso acontecer…

Nos próximos doze meses a Igreja deverá eleger pelo menos três novos Bispos. Não sou candidato em nenhuma dessas eleições: em duas nem fui convidado a sê-lo (rsrsr), e para todos que me sondaram para a terceira, fiz a mesma pergunta: qual é o projeto diocesano? até agora ninguém me deu resposta adequada e por isso, agradeço a lembrança do meu nome mas… não me sinto capaz de carregar e tocar sozinho pianos desafinados – se houver uma orquestra, até posso ajudar com o piano, ou um violino, mas uma orquestra só toca bem com bons músicos e uma boa harmonia, e isso não depende só do regente, mas de cada um com seu instrumento.

Que Deus abençoe a IEAB, e que o Espírito Santo oriente – com paciência! – os processos de eleição episcopal em curso.
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