18 de set. de 2013

A estranha rotina de um sujeito estranho

Notívago, ele nunca se deita antes das cinco horas da manhã, nem levanta-se antes de meio dia. Ao levantar-se, toma seu desjejum, sempre o mingau de aveia, o café preto com bolachas água e sal, sem manteiga, e a maçã, ou a pera, que se alternam nos dias da semana. Aos domingos, dispensa o café e as bolachas, contenta-se com o mingau e uma boa porção de mamão com creme de leite.

Após o café, todos os dias, exceto sábado e domingo, telefona para o seu administrador geral e informa-se da situação dos seus investimentos: imóveis, ações, uma grande fazenda de gado, uma indústria média de auto-peças. Quase raramente visita a sede do escritório geral da holding, onde tem à sua disposição uma enorme sala com decoração austera, de muito bom gosto. A Secretária chega em sua mansão religiosamente às 14 horas, de segunda à sexta-feira. Ela traz relatórios e a correspondência. Após lê-los de forma diagonal, dita algumas cartas e despacha a secretária nunca depois das 17 horas.

Então, lhe é servido, a título de almoço (ou jantar, fica a critério do leitor), uma salada bem temperada, uma carne assada (que varia entre carne bovina, frango, ou pato); nas sextas-feiras é sempre um peixe ou frutos do mar. Após a refeição, ele caminha por trinta minutos pelo jardim da mansão, dá orientações ao jardineiro que já o espera ao lado da fonte luminosa (no inverno já está acesa, pois o sol se põe muito cedo).

Às vinte horas está devidamente vestido para a noite: um dos seus ternos escuros, que variam entre o tradicional preto ao azul marinho, as camisas sociais bem passadas sempre em tons de azul, a gravata de seda sempre em tons vinho, sem estampas; meias escuras e sapatos em cromo alemão, sempre pretos.

Nas segundas-feiras vai ao cinema, como sempre fez desde a adolescência. Nas primeiras terças-feiras de cada mês participa da reunião do Conselho de Curadores do Museu Municipal, do qual é o Presidente há mais de dez anos e grande benfeitor; nas demais, visita o Clube de Xadrez onde joga uma ou duas partidas. Nas segundas quartas-feiras de cada mês, preside a reunião do Conselho de Administração da Sociedade de Amigos da Catedral. Nas demais quartas-feiras, costuma convidar alguém para jantar, sempre no restaurante do Palace Hotel, onde dispõe de uma suíte sempre reservada. Nas quintas-feiras, vai ao teatro. 

Nas sextas-feiras não é bem clara sua agenda. Ele simplesmente sai de casa, dispensa o motorista e dirige seu carro ou chama um taxi. Nunca diz onde vai. Seja qual for o compromisso da noite, ele nunca retorna à casa depois de uma hora da madrugada. O mordomo lhe serve uma ceia simples e então fica lendo em sua biblioteca até a hora de dormir. Todavia, algumas sextas-feiras ele costuma chegar bem mais tarde, entre quatro e cinco horas; o mordomo é instruído para não esperá-lo nas sextas-feiras. 

Não usa computador, não tem endereço eletrônico, nem participa de redes sociais. Todavia é sempre bem informado. O mordomo comenta que, nas madrugadas, o senhor lê os jornais e revistas, além de algum livro.

Aos sábados, após o desjejum, veste um terno claro,  em tons de bege combinado com as meias e os sapatos que, aos sábados nunca são pretos. Então vai a um cemitério, onde, sobre um túmulo simples, deposita um maço de tulipas holandesas, que são entregues na mansão sempre às 10 horas da manhã de cada sábado. Permanece no cemitério por meia-hora diante do túmulo e depois caminha lentamente pelas alamedas. Às cinco horas ele assiste o ofício das vésperas cantadas na Catedral. Após o ofício sempre há alguma programação musical ou estudos bíblicos, dos quais participa com entusiasmo. E termina a noite sempre convidando o Deão e esposa para jantar em sua casa. Algumas vezes convida também um ou outro cônego. Raramente convida o Bispo… No sábado, recolhe-se mais cedo, por volta das duas horas da manhã, dispensando o lanche frugal uma vez que o mordomo já está no gozo de sua folga semanal, bem como os demais empregados da mansão, que terminam o serviço após o jantar com o Deão e só retornam na manhã de segunda-feira.

Domingo é um dia diferente. Ele acorda mais cedo, prepara seu próprio café, veste-se e dirigindo seu carro participa da Missa Solene na Catedral ao meio-dia, geralmente presidida pelo Bispo, ou pelo Deão, com a presença de todo o Cabido devidamente paramentado. Após a Missa, almoça em um restaurante próximo à Catedral, compra flores da mesma florista na praça para uma senhora idosa residente em uma Casa de Repouso luxuosa que fica em um recanto na periferia da cidade. Passa lá toda a tarde. Ao anoitecer, visita a mesma confeitaria fina, onde saboreia um Chá completo, com biscoitos. Então, vai à casa de Sara, para, com ela, jantar na suíte do Palace. Chega em casa impreterivelmente à uma hora da manhã, e dedica-se à leitura.

No verão sempre faz um cruzeiro, acompanhado de Sara e da senhora idosa que vive na Casa de Repouso. Cada ano escolhem um roteiro diferente. No inverno, passa uma semana esquiando com Sara na Cordilheira.

E assim foi sua vida nos últimos dez anos. No outono, a senhora idosa morreu, um infarto fulminante.

Agora passava as tardes de domingo caminhando pelas alamedas do Parque Municipal. No inverno, Sara decidiu não esquiar, e assim, ele passou a semana de folga em sua fazenda. Ao retornar, soube que Sara havia deixado a cidade, sem informar para onde.

Decidiu então vender todos os seus bens, inclusive a mansão. Colocou todo o dinheiro apurado em um fundo à disposição do Cabido da Catedral para manter a Escola e o Orfanato, deixando também um quinto para o Museu.

Retirou-se para a Abadia, professou os votos da Regra de São Bento, e lá viveu seus últimos anos, vindo a falecer com 86 anos de idade. A Escola da Catedral recebeu seu nome, assim como a praça. Seu corpo foi sepultado no cemitério da Abadia.
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