17 de mar. de 2020

Céu e Inferno

     Os cristianismos têm muitas contradições. Uso “cristianismos” porque existem vários. Não estou falando da Fé em Jesus Cristo, mas das diversas modalidades da religião chamada Cristianismo. Algumas dessas contradições são comuns a todas modalidades do cristianismo; outras se aplicam a algumas modalidades.  Não identificarei as modalidades neste artigo, pois seria emitir julgamento sobre modalidades que não conheço em profundidade, embora eu conheça várias; caberá ao leitor fazer tal identificação se sentir habilitado para isso.Vou falar de uma dessas contradições.
     O cristianismo é dualista; afirma a dualidade “Bem” e “Mal”, e define dois “lugares” para a “vida” após morte, a “vida eterna”: 
   O chamado Céu, “lugar” onde Deus habita, é reservado às pessoas que em vida cumpriram a vontade de Deus, arrependeram-se de seus pecados, etc.; um prêmio. 
O Inferno, todavia, é o “lugar” onde o Diabo vive e preside, é o lugar do castigo; lá Deus não está. 
Em outras palavras, isso se baseia em merito – os bons vão para o céu, os maus para o inferno – a cada um o que merece! Parece um critério de justiça humana… 
     Afirmam, a maioria dos pregadores e catequistas, que – segundo as Sagradas Escrituras – no “final dos tempos” (entendido como “final do mundo”) Deus estabelecerá seu Reino definitivamente. Lá viverão os fiéis, ressuscitados em um corpo excepcional, os que praticaram o bem e aceitaram a salvação através da morte e ressurreição de Jesus, reconhecendo-O como Senhor e Salvador.  Já os maus, os que recusaram a Salvação (e ai se enquadram todos os fiéis de outras religiões, inclusive), viverão para sempre no fogo eterno do Inferno.
     Algumas tradições, originárias da Idade Média, afirmam ainda que existem mais dois “lugares” onde ficam as almas que não foram para o Céu, nem para o Inferno, por diversas razões: o Purgatório – reservado para as almas dos que não tendo sido muito bons, precisam ainda sofrer penalidades para serem limpos (purgados) e ganharem o céu – e  o Limbo, onde ficam as almas dos nascituros não batizados (cujo único pecado é o herdado por serem humanos), os bons ateus e fiéis de outras religiões que se comportaram de acordo com os princípios morais cristãos.
     Embora “Purgatório” e “Limbo” não fossem reconhecidos pela Reforma, hoje, onde fazem parte da doutrina, não estão mais sendo citados… estão sendo abandonados mas não desmentidos!

1. Contradições
    Os conceitos acima relacionados provocam várias contradições. Vejamos algumas:
1.1 – Empate: se sobrarão o Céu dos bons e o Inferno dos maus, o jogo da história terminará empatado: Deus com seu reino celestial e o Diabo com seu reino infernal. Ninguém ganhou! Será traçado uma linha divisória entre os dois reinos… um abismo… de modo que quem está em um não poderá passar para o outro. O Bem e o Mal permanecem para sempre! Venceu a meritocracia, Deus e o Diabo estão felizes…
1.2 – Onipresença de Deus: se Deus não está no Inferno, então não é Onipresente, como afirmam os catecismos. Há um “lugar” onde Deus não está!
1.3 – Almas perdidas: o que acontece com o Purgatório e o Limbo, no final dos tempos? Em relação ao Purgatório, parece fácil: os que sobraram lá não completaram a purgação, portanto vão para o Inferno. Quanto ao Limbo, ou ele permanece (ficaria um terceiro lugar no final dos tempos) ou as almas ficam em lugar nenhum, perdidas sei lá onde. Fica a pergunta: Deus estaria lá ou não? Se sim, então as alminhas iriam para  Céu, não precisava do Limbo; se não, então as alminhas iriam para o Inferno, também não precisaria do Limbo… que confusão!
     Fiz tais perguntas quando tinha 11 ou 12 anos, em uma aula de religião no colégio dos Irmãos Maristas onde estudei. Realmente, eu estava muito preocupado com essas alminhas, pois havia perdido um irmão que morreu antes de nascer. O bom Irmão que lecionava a matéria disse que isso ficaria por conta da misericórdia de Deus e seria um mistério….
     Ainda bem que os Reformadores do século XVI recusaram aceitar tais conceitos …
2. Afinal, o que é Inferno?
     A palavra “inferno” deriva do latim “infernum”, que significa “as profundezas”, o “mundo interior”.  Deriva de “inferus” no latim pré-cristão, significando “lugares baixos”.
    Essa palavra latina  foi utilizada como tradução da palavra grega “Hades”, lugar dos mortos, nome também da divindade pagã que o governa, o deus Hades (Plutão dos romanos), entendido como local escuro e insalubre.
    Por sua vez, Hades foi a palavra grega que traduziu o termo hebraico “sheol” – lugar dos mortos, cuja origem é incerta, com hipótese de ter origem nas línguas dos acádios e sumérios. A Bíblia Hebraica usa o termo sheol (65 vezes) para se referir ao submundo dos mortos retratado como um profundo e escuro abismo. Na Bíblia o termo está estritamente relacionado a abismo e sepultura. Segundo o pensamento israelita antigo, o “sheol” seria um abismo escuro e silencioso situado nas profundezas da terra, para onde todas as pessoas iam depois de morrer. “Sheol” é também a “sepultura” ou “morada de todos os mortos indistintamente”. Não é um local desejável de se ir, exceto quando preferível a um grande sofrimento aqui na terra dos vivos.
    Na Bíblia Hebraica, bem como em sua tradução grega (Versão dos LXX), e no Novo Testamento (onde aparece como Hades) não há o ensino de que era um local de fogo e tormento dos maus como na ideia medieval (e atual) de inferno. Em alguns textos do Antigo e do Novo Testamento, Sheol (no NT grego, quando não traduzido por Hades) também se refere o local onde era jogado o lixo das cidades, permanentemente ardente de fogo por motivos óbvios de saneamento. Talvez venha daí a ideia medieval de inferno, que perdura até hoje. 
4. Penas Eternas e Maniqueísmo
    Por se recusarem a aceitar o conceito de “penas eternas” muitas pessoas foram classificadas como hereges e foram punidas pelas respectivas denominações. Por isso, para não dar margem aos oportunistas que não gostam de mim, afirmo que CREIO nas penas eternas… (será mesmo? rsrsrsrsrs)
    A dicotomia Bem e Mal é antiquíssima: vem do mundo persa, do Zoroastrismo; em resumo simples, afirmava haverem duas divindades: a divindade do Bem e a divindade do Mal. Também dai derivam os fundamentos para o conceito de Salvação, comum a vários credos religiosos desde a antiguidade, passando pelo judaísmo e pelo cristianismo, incluindo o pensamento mulçumano e as especulações Kardecistas.
    No meio cristão esse dualismo é conhecido como Maniqueísmo, devido ao ensino de Manes (ou Maniqueu), filósofo persa do século III, que associou  o Bem a Deus e o Mal ao Diabo. Manes juntou conceitos do zoroastrismo, do budismo, do judaísmo e do cristianismo, considerando Zoroastro, Buda e Jesus como "pais da Justiça", e pretendia, através de uma revelação divina, purificar e superar as mensagens individuais de cada um deles, anunciando uma verdade completa1.
    Embora repudiado como pensamento herético, o maniqueísmo se firmou de forma sutil no pensamento cristãos, servindo de referencial ainda hoje, e – inspirando interpretações da bíblia – acabou criando, no cristianismo, o triste conceito dualista de sagrado e profano, vida do mundo e vida do espírito, e ainda hoje muitos cristãos e cristãs se afirmam fugir do mundo para não se contaminar por ele… (contradição: Jesus orou ao Pai para não nos tirar do mundo, mas nos livrar do Maligno! – João 17).
    O pensamento maniqueísta gera um conceito de justiça significando castigo para os maus, criando assim uma escala de valores que hoje seria chamada de meritocracia. Nesse conceito, é justo que os maus sofram para sempre (sentimento de vingança!) e os bons sejam premiados. E o cristianismo foi criando uma enorme diversidade de “quem é mau”: os que não obedecem à Lei de Deus os que não aceitam Jesus Cristo, os que morrem em “estado de pecado” (quem define o que é pecado?), os crentes de outros credos, ateus, quem foge da “moral sexual”, e por ai…
    Assim, como Deus é justo, Ele pune os maus de forma cruel! sem misericórdia! Em total contradição com o significado de Justiça apregoado na Bíblia, que é sempre paralelo ao de misericórdia e  de graça. Quando ouço certos pregadores fazendo a apologia do inferno, especialmente condenando quem pensa ou se comporta diferente, penso cantar o Hino: “Tu é cruel, Senhor, meu Pai Celeste…” ao invés de “Tu és fiel…” Nesse caso, Deus não se diferencia do Diabo, o qual, aliás, seria mais bondoso, pois “premia” sem exigências…
     Na lógica maniqueísta, se os maus não forem castigados, que adianta fazer o bem?
5. Então, vai todo mundo para o Céu?
    Não penso assim! aliás, não penso nisso!
    Creio em Jesus Cristo e vejo seu Reino como horizonte utópico 2 , creio que o alegado “Tribunal de Deus” não se baseia em direito penal, mas em paternidade carinhosa e misericordiosa. Quanto aos mortos… e a vida após a morte… isso é simplesmente uma questão de fé!
    A Igreja dos primeiros séculos compreendia o “Inferno” como Hades. Assim, o Credo de Nicéia afirma que Jesus, depois de ser crucificado, desceu ao Hades (Inferno), não ao reino de Satanás, o qual foi vencido na Cruz.
    Para finalizar quero dizer que no NT há várias passagens que fala da morte eterna. em contraposição à vida eterna. Assim,  não se refere a Infernos, locais de castigo, mas simplesmente à não vida eterna. Ainda assim… parece meritocracia!
    Você dirá: se não há mérito, então por que fazer o bem? Porque, simplesmente, fazer o bem é realizar aquilo para que fomos criados por Deus: sermos bons porque Ele é bom! Fez algo mau? arrependimento, colocar-se diante do Senhor confessar e pedir perdão, quando possível, reparar o mal feito… pelo menos, pedir desculpas… e não fazer mais!
    Ah! vc é ateu? não crê em Deus? então perdeu tempo lendo este texto. I am so sorry!
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Notas:
1 - para mais esclarecimentos, pesquise ´na internet; o texto da Wikipédia é muito bom.
2u-topos: não lugar ainda; diferente de a-topos: nunca lugar.